Influenciada pela música e pela natureza de sua infância em San Fernando, a artista radicada em Caracas, criou um estilo escultural único e fluido. Seu trabalho reflete a conexão entre as paisagens e a memória compartilhada de Trinidad e Venezuela, explorando formas orgânicas e materiais diversos em um processo de sintonia com o ambiente.
Cortesia do artista e de Henrique Faria, Nova York.
Chac, chac, cri, cri, croac, croac. Tudo vibra no jardim mínimo ao lado da janela do quarto onde estou hospedada em Porto de Espanha, a capital de Trinidad e Tobago. Sapos, grilos, cigarras, insetos não identificados. Uma orquestra natural interrompida somente pelo soca dos carros que cruzam a Avenida Ariapita em alta velocidade. À noite, insetos e soca. De manhã, o triste vallenato de Farid Ortiz ou Silvio Brito e as baladas melosas de Alejandro Montaner. Será que é a memória dessa música que impulsiona o movimento interno das esculturas de Brathwaite? A artista Valerie Brathwaite nasceu em 1938 ou 1940 em San Fernando, nas planícies centrais de Trinidad, mas vive em Caracas desde 1969. Em seu perfil no Instagram, ela se descreve como escultora e DJ. “Aos sábados, minha mãe cantava ao piano em reuniões com seus amigos. A música era muito importante na família, de modos que nós três irmãos tivemos que aprender a tocar instrumentos”, conta a artista. “Meu irmão mais velho tocava piano, o mais novo e eu aprendemos a tocar violino e eu aprendi a tocar piano. Eu era muito ruim, essa forma de música não era para mim. Por fim, comecei a colecionar músicas e a compartilhá-las como DJ nos anos 1990.”
Participante da cena venezuelana desde os anos 1960, diz-se que ela criou um estilo único: “ondulante”, “voluptuoso”, “fluido”, segundo a curadora Cecilia Fajardo-Hill, um estilo que “não se encaixa nem na história da abstração modernista nem nas tendências conceituais da Venezuela dos anos 1970 e 1980”. O fato de ser elusiva também salta à vista na grande quantidade de retratos que fizeram dela: o olhar inapreensível, o perfil silencioso. Brathwaite não gosta de falar sobre seu trabalho, mas se alegra ao recordar seus dias em Trinidad: a música, “as montanhas que se podia ver da minha varanda, o forte aroma de curry quando os vizinhos cozinhavam”.
Na Arco Madrid 2024, Brathwaite exibiu formas ondulantes, diminutas, com algo de vulcão, flor que se abre ou colina. Das montanhas que via da varanda, hoje resta um planalto partido ao meio, consumido pelas construtoras. Observada dessa ínfima altura, San Fernando é uma cidade amontoada de ruas íngremes e sinuosas: as causas mais altas têm três andares e cada uma parece estar sobreposta à outra, como se a cidade fosse feita de camadas. Na série Subacán (2010) ou Where have all the flowers gone? Longtime passing! (Para onde foram todas as flores? Já faz tanto tempo! – 2020), a madeira pintada e os tecidos criam formas sem começo nem fim: a madeira poderia ser tecido ou o tecido poderia ser madeira, confundindo-se um com o outro.
Enquanto atravesso a ilha acompanhada por alguns artistas de Trinidad, eles comentam que a presença indo-descendente em Trinidad deixou como legado uma rica teoria das cores. Observo os azuis, verdes, rosas e laranjas em tons pastéis do templo de Hanuman, e surgem diante de mim os beges, laranjas, rosas e azuis da série Soft Body. Mas, em se tratando de cor, “Caracas é linda”, diz a artista, “há muito verde, muitas plantas e uma arquitetura muito interessante”.
A noite é o momento em que as linhas, formas e cores começam a tomar liberdades, que logo se tornarão volumes de madeira e tecido durante o dia […], ou gesso, metal, cerâmica, cimento e materiais que sejam necessários.
Do nível mais baixo da colina de San Fernando, é possível ver as Bocas do Dragão, a ponta do mar que separa a Venezuela de Trinidad. “[Os dois países têm] uma história em comum, por isso a Venezuela sempre foi uma referência para mim. Lembro-me de quando eu era menina, e em algumas férias, meus pais, irmãos e eu ficávamos sentados olhando as luzes da Venezuela a partir de Trinidad”, conta Brathwaite. “Tive que decidir como continuar a ser artista da maneirea mais independente possível. A Venezuela me oferecia essas oportunidades. […] Foi muito rápido fazer amizades […], especialmente com artistas e pessoas relacionadas à arte e à cultura, como Gego, Rudolph Stejskal, William Stone, Teresa Casanova, Lourdes Blanco e Miguel Arroyo, Vladimir Sersa, José Sigala.”
Brathwaite chegou a uma Caracas dos anos 1970 elétrica e cosmopolita, muito distante da aparente tranquilidade de Porto de Espanha. Mas não se engane: basta andar um pouco pelas ruas de Woodbrook, Belmont ou San Fernando para encontrar uma cidade que surpreende com sua arquitetura ou com os sons sobrepostos de soca, Bollywood ou das baladas de Montaner. Sem referências para falar de Trinidad, a pessoa se contenta em vê-la acontecer, móvel, elusiva. “Durmo pouco e prefiro trabalhar à noite, desenho muito de madrugada”, escreve a artista. “A noite é o momento em que as linhas, formas e cores começam a tomar liberdades, que logo se tornarão volumes de madeira e tecido durante o dia […], ou gesso, metal, cerâmica, cimento e materiais que sejam necessários.”
A linha se torna volume na cerâmica, o tecido ou o gesso insistem em seu desejo de liberdade. As formas de Brathwaite são formas transbordadas: tudo está em expansão, Soft Body ou os Subacán se espalham pelo chão ou se penduram na parede. A linha dos desenhos em papel dos anos 1970 é larga e aberta, esvai-se. Esse movimento incessante, musical, volta a atenção para o processo: o que acontece ou poderia acontecer, ao mesmo tempo em que amplia o tempo. E em Porto de Espanha o tempo é uma coisa lenta que para às cinco horas da tarde e se cala no domingo. Se cala? Na verdade, soa baixinho, porque, como disse no início, aqui e nas esculturas de Brathwaite, a música é incessante: flor que se abre, vulcão em erupção, colina que crepita.
A autora agradece a Valerie e a Kenderzon por sua generosidade nas respostas e à longa lista de amigues que tornaram possível esta conversa.
Tradução: Marie Leão