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Cinthia Marcelle: Barreiras de papel

Nas obras de Ferramentas desobedientes, encontramos elementos típicos do trabalho de Marcelle, como o uso de materiais simples ou o convite para modificar as obras. Entretanto, cada trabalho contém uma grande profundidade e um significado que nos levam a questionar como seria o mundo se as regras sociais fossem suspensas.

A outra sala contém… o que contém exatamente? Difícil dizer. Uma espécie de explosão dirigida, uma coreografia – bem estudada – da desordem: tecidos pretos pendem dos tetos altíssimos, as paredes brancas estão cobertas com discos de plástico; no chão há pedaços de papel dispostos em forma de pirâmide, de coração ou transformados em figuras de aparência alienígena; em um canto, vemos sacos brancos de conteúdo desconhecido e sinistro, por toda parte pedaços de corda, pedras, pó vermelho. O tapete preto, que também cobre o chão aqui, está trespassado de marcas brancas. Pouco a pouco começamos a reconhecer os objetos que vimos antes. Agora, livres de suas embalagens, com suas posições trocadas, quebrados, desgastados, entraram em novas relações. A ordem neurótica do primeiro espaço é agora caos, ou melhor: uma nova ordem. O espaço dividido e a parede intransponível dão lugar a uma cenografia que anima o nos mover de maneiras insólitas.

As salas compõem a fenomenal obra A família em desordem, da artista brasileira Cinthia Marcelle. A instalação, por sua vez, é o núcleo de Ferramentas desobedientes (Ungehorsame Werkzeuge / Herramientas desobedientes / Disobedient Tools), a exposição que o Museu Marta Herford, na Alemanha, com curadoria de Anna Roberta Goetz, dedicou a Marcelle até o final de maio de 2023.

Cinthia Marcelle nasceu em 1974 em Belo Horizonte, no Brasil, e vive e trabalha em São Paulo. Seu trabalho foi exposto em vários espaços, entre eles o Modern Art Oxford, o MoMA em Nova York, o PinchukArtCentre em Kiev ou o Museo de Artes Visuales em Santiago do Chile, bem como em várias bienais. Recentemente, sua obra foi objeto de importantes exposições panorâmicas: no MACBA, em Barcelona, no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e, agora, no Marta Herford.

A família em desordem bem poderia ser considerada uma espécie de “enciclopédia” que engloba motivos e preocupações presentes no restante da obra de Marcelle.

No começo da exposição no Museu, encontramos um rolo de fita de velcro pendurado de uma parede (Obra dinâmica: à procura de sentido). De uma das extremidades pende um cadeado de metal. Em outras partes do museu, há outras duas fitas exibidas de forma diferente. Visitantes estão autorizados a desinstalá-las, mudar sua forma e reinstalá-las em outro lugar. A videoinstalação de

Confronto baseia-se – como todos os trabalhos em vídeo de Marcelle – na ideia de rotinas simples levadas a cabo por pessoas da mesma profissão. Neste caso, vemos as linhas de uma faixa de pedestres. Toda vez que o semáforo fica vermelho, artistas de rua entram na faixa de pedestres e fazem malabarismos na frente dos carros parados. A cada vez que aparece, o grupo fica mais numeroso. Quando o semáforo fica verde, as e os artistas saem. No entanto, quando o grupo é formado por oito pessoas, a rotina é quebrada: os artistas continuam fazendo malabarismos mesmo depois que o semáforo fica verde. Como os motoristas enfrentarão essa súbita anulação da validade da regra?

Outras obras rompem outras categorias tradicionais. Em em-entre-para-perante #2, ferramentas de metal, utilizadas normalmente para quebrar, cortar, desmontar, cavar, foram enroladas em cadarços. Estão, digamos, desativadas. Por via das dúvidas #3 consiste na representação de uma parede em uma folha de papel com pedaços de fita adesiva. É como se Marcelle estivesse zombando da própria ideia de “barreira”. E em Cerca Miragem (300 mourãos), trezentas estacas, que antes formavam uma cerca, são tiradas do chão e colocadas de cabeça para baixo contra uma parede. Elas agora formam uma nova cerca, porém inútil, que não demarca nada e poderia ser derrubada com um empurrão.

Nessas obras, encontramos elementos típicos do trabalho de Marcelle: o uso de materiais simples, a colaboração com pessoas da classe trabalhadora ou o convite para modificar as obras. Mas há algo mais, que confere aos trabalhos da artista – especialmente quando vistos em conjunto – profundidade e significados fascinantes: cada um convida a uma reflexão sobre as regras sociais e institucionais: até que ponto essas regras dificultam nossos comportamentos cotidianos? E o que acontece quando as regras são suspensas?

Do mesmo modo, através de suas instalações, vídeos e objetos, cujos elementos fluem e não se comportam como “deveriam”, Marcelle questiona a maneira como entendemos objetos, mecanismos e hierarquias familiares, bem como conceitos como “ordem” e “caos” ou “autoria” artística.

Visitar a exposição é testemunhar a deconstrução elegante, mas enfática, de noções que acreditávamos serem fixas. Testemunhamos o que acontece nas obras de Marcelle, nos afastamos delas e, de repente, sentimos que vemos (ou poderíamos – deveríamos? – ver) o mundo, as relações entre as pessoas, as coisas da vida cotidiana e as instituições que determinam essas relações de uma maneira completamente nova.

E, aqui também, o jogo entre as duas salas que compõem A família em desordem é revelador: cada uma delas provoca sensações contraditórias; a forma como as coisas estão expostas é radicalmente diferente, tanto que parece que os próprios objetos são diferentes. Mas, a rigor, ambas as salas se espelham uma na outra, poderiam ser uma só.

Cinthia Marcelle: Ferramentas desobedientes (Ungehorsame Werkzeuge / Herramientas desobedientes / Disobedient Tools)

Museum Marta Herford, 04/02/2023 – 29/05/2023

Hernán D. Caro é escritor e editor, nasceu em Bogotá, na Colômbia, e vive na Alemanha desde 2001. É doutor em Filosofia pela Universidade Humboldt de Berlim. Colaborou com veículos de mídia na América Latina e na Alemanha, entre outros com a revista Arcadia e a emissora Deutsche Welle. É colaborador independente da edição de domingo do jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung. Foi coeditor da C&AL entre 2018 e 2021 e atualmente é coeditor da revista on-line Humboldt do Goethe-Institut.

 

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