Coletivo Coletores

“A gente vive em uma cidade que expulsa”

Formado pelos multiartistas Flávio Camargo e Toni Baptiste, de São Paulo, o Coletivo Coletores propõe a discussão de temas urgentes como o direito à cidade e o combate ao racismo e à exclusão. O duo trabalha com diferentes linguagens como o grafite, a fotografia e a videoprojeção.

Toni Baptiste: Nos apresentamos como um coletivo. Ao contrário da suposição de que existe um boom dos coletivos de cultura da periferia, acreditamos que ocorre é uma percepção externa maior dessas manifestações coletivas. Essa forma de organização é muito mais antiga do que nossa existência. Podemos traçar uma linha do tempo desde os quilombos, os terreiros, os quintais de samba, as posses [bailes funk & Soul na periferia], as crews de hip hop, as gangues punk, até chegar agora nos coletivos culturais. Na realidade, os coletivos periféricos de hoje são muito semelhantes às posses que organizavam as festas que meu pai frequentava nos anos 1960 e 1970 – festas que não eram só para o lazer, mas também um momento para organizar os mutirões, discutir a implementação de uma linha de ônibus na comunidade. A festa era muitas vezes uma desculpa para discutir algo mais complexo. Essa maneira horizontal de organização é perpetuada até hoje pelos coletivos.

Linguagens em diálogo

Flávio Camargo: Começamos com uma produção gráfica, que era uma resposta à nossa relação com o grafite, e daí vieram a fotografia, a produção de dispositivos óticos, mecânicos e sonoros, os meios digitais, as videoprojeções. A gente teve uma fase de trabalhar com o que chamamos de baixa tecnologia. A obra Autônomo é um dispositivo sonoro que produz som a partir de imagens e é de baixa tecnologia. Nós construímos um circuito eletrônico, com suporte de plaquinhas de papelão, usando componentes eletrônicos que conseguimos desmontando outros aparelhos. Trabalhamos pensando muito na bagagem de nossos avôs desmontando um rádio, alguma máquina ou a televisão para consertar. A gente viu muito as pessoas a nossa volta tentando entender a tecnologia por dentro, diferente da alta tecnologia de hoje que é muito mais fechada, hermética. São para o uso apenas, mas não para apropriação. A gente achou importante resgatar isso.

Toni Baptiste: E a gente tem um pensamento de Gesamtkunstwerk, que é a ideia de uma obra de arte total. Tentamos desenvolver algo em direção a uma obra de arte que seja visual, mas que também seja arquitetura, que tenha um som, que estabeleça uma relação com as pessoas. Fomos desenvolvendo essas linguagens sempre em diálogo com os territórios e com o contexto social.

Cidade viva

Flávio Camargo: O videomapping é basicamente uma projeção em vídeo sobre uma superfície irregular. Temos a obra Resista!, que começamos em 2014. E continuamos colocando camadas sobre ela, como uma obra aberta. Resista! é uma obra composta de diferentes sequências de imagens de manifestações de resistência, como a caminhada de Martin Luther King em Selma, a revolta dos Palestina, o movimento de Chiapas, das Mães da Praça de Maio ou das Mães de Maio aqui no Brasil. A primeira apresentação desse trabalho foi no skyline da comunidade da Vila Flávia, na beira de um córrego na zona leste de São Paulo, um mapping de escala monumental em um espaço que não é reconhecido como monumental.

Toni Baptiste: Quando fazemos ou vemos as projeções em prédios no centro da cidade, pensamos: caramba, que legal, a cidade fica mais viva! Então a gente constrói essa linguagem nas periferias também, para trazer essa perspectiva do direito à cidade, de uma cidade que funciona 24 horas não só no centro, mas também nas periferias.

Apagamento e memória

Flávio Camargo: Um processo muito importante para gente é o de ressignificar os espaços e trabalhar com a memória. A gente lida muito com a ideia do apagamento social e cultural de parte da população, que é um processo cotidiano e não só histórico. Quando gente faz a projeção da imagem de Tereza de Benguela sobre a Igreja dos Homens Pretos em Penha de França (zona leste de São Paulo) ou quando projetamos a frase “estamos vivos” sobre os prédios, que é uma frase representativa dos povos andinos e latino-americanos, é justamente para tentar sensibilizar para a história que é anterior à nossa existência, e pensar nosso presente. E qual é o nosso presente? Nosso presente ainda é o do genocídio negro, representado, por exemplo, na imagem projetada da Marielle.

Toni Baptiste: Em um evento da Jornada do Patrimônio aqui em São Paulo, a gente fez um trabalho que ressignificou a estátua do Borba Gato. Com a video projeção, usamos a estátua como se fosse uma estrutura vazia e derramamos um líquido dourado dentro dela. Na primeira impressão, o público mais desatento pensa: “Que lindo, o Borba Gato de ouro, esse é o ‘valor’ da história”. E eis que aquele ouro entra em movimento, o dourado vira vermelho sangue, e então projetamos uma série de imagens, desde gravuras e aquarelas do período colonial, de negros escravizados e indígenas, até imagens de barbáries contemporâneas, como a dos desaparecidos da ditadura militar, das chacinas policiais, trazendo o verdadeiro legado do Borba Gato e dos bandeirantes para nossa sociedade. É meio que desvelar o que realmente significa aquela estátua. Esse é o impacto. O público daquela região ama essa estátua como ela é, mas quando viram as projeções puderam fazer essa nova associação.

Falta espaço cidadão

Flávio Camargo: Acho que a gente vive uma relação muito tensa com a cidade, de tensões que vêm da falta de um espaço realmente cidadão. A gente vive em uma cidade que expulsa quem é diferente, a própria ideia de existerem periferias comprova isso. A gente acredita em uma cidade ideal, não utopicamente ideal, mas que seja possível para as pessoas. Uma cidade que acolhe, que dá espaço, que cria relações de diálogo, onde a praça pública possa ser o centro das relações. A relação do nosso trabalho com a cidade é nesse sentido: é de tentar criar, despertar algum tipo de pensamento, de diálogo, para que esses espaços venham a ser mais acessíveis para todo mundo.

Tânia Caliari é jornalista. Vive em São Paulo.

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