As fotografias de Elle Pérez são impressionantes e misteriosas, elas retratam pessoas e lugares de mundos bem diferentes. A fotógrafa do Bronx, Nova York, conversou com Nan Collymore para a Contemporary And (C&) América Latina sobre o olhar do amor, a fragmentação do corpo e a identidade em suas fotografias.
Elle Pérez, Lineysha Sparx na festa Euforia Latina do Clube Hippo, Baltimore, 2013. Cortesia da artista.
Elle Pérez, Kirsten 2015, da série Reinas (Rainhas, 2013-2015). Cortesia da artista.
Elle Pérez, Hand (Mão), de In Bloom (Em flor, 2015-2018). Cortesia da artista.
Elle Pérez, Sem título, Baltimore, 2014. Cortesia da artista.
Elle Pérez, Warm Curve (Curva quente), 2018. Cortesia da artista.
Elle Pérez, Sem título, Bronx 2015. Cortesia da artista.
“A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos hoje estão viciados”, escreveu Susan Sontag em seu famoso ensaio On Photography (Sobre a fotografia, 1977). “As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental.” E isso, décadas antes da ofensiva das mídias sociais, antes do Instagram e da selfie. Esse definitivamente não é o caso da obra de Elle Pérez, que, embora contemporânea, viaja pelo tempo, pelo futuro e pelo passado dos Estados Unidos. Retratos como Ian 2017/2018 e Kirsten 2015 são vívidos e verdadeiros, momentos nas vidas daqueles que Peréz conhece ou passa a conhecer e dos quais, através desse relacionamento, revela as almas. Seja convidada ao seio de um grupo através de conexões familiares, amizade ou mensagens em mídias sociais, Pérez obtém estados emocionais profundos dos sujeitos das fotos. Mas não somos voyeurs; somos convidados à imagem, para examinar a luz, o escuro ou a cena inconstante, evanescente.
C& América Latina: Conte-me mais sobre a mudança da orientação vertical para a horizontal em suas fotografias.
Elle Pérez: Estava conversando com algumas pessoas e elas observaram que o uso de uma orientação horizontal em meus trabalhos prévios fazia sentido. Parecia se adequar à teatralidade dos sujeitos, então fazia sentido ser como a foto de um filme ou de uma produção teatral. Mas, pensando sobre o corpo, o foco muda, faz sentido que algo imite a forma do corpo, o movimento para cima e para baixo. Achei que aquela foi uma observação bem astuta e não pude acreditar que não havia visto isso antes. (Risos). Fiquei agradecida por eles terem solucionado esse mistério. Acho que é uma maneira interessante de pensar sobre isso, e certamente parece fiel a meus interesses. Acho que, trabalhando com retratos por tanto tempo, os aspectos da história da arte ocidental se incorporaram ao meu inconsciente. Eu os vinha reproduzindo inconscientemente, daí a sensação de que estava certo assim, porque essa mudança formal aconteceu ao longo de meu interesse cada vez mais profundo em refletir sobre o corpo.
No momento, estou trabalhando em algumas imagens novas, do fim de semana passado. Há algo na maneira como o enquadramento estreito interage com a figura que é familiar, como nas imagens de meu parceiro, Ian, que fotografo colaborativamente, e também com amigos íntimos. Com o tempo, eles se tornam bem familiares. Fiz uma imagem de Ian que não exibi: há um arco que tem uma composição circular, e parte do círculo se completa fora do enquadramento; por causa do jeito que eu o contorno, ele circula por fora e em volta de uma forma que acho dinâmica e nunca fiz uma imagem como aquela antes. Acho realmente divertido fazer isso, descobrir maneiras diferentes de representar diferentes partes do corpo.
C&AL: Pode falar mais sobre a fragmentação do corpo em seus trabalhos de fotografia e vídeo?
EP: Acho que isso surge da forma como você olha para alguém que ama. Primeiro, quando as pessoas são novas para você, e depois a forma como você olha para elas quando já as conhece por algum tempo. Existe algo em ver uma pessoa plenamente no início e então, quando você passa a conhecê-las por um tempo, elas quase que se transformam num holograma, você interage com elas, capta essas linhas, não as vê necessariamente como realmente são, a menos que não as tenha visto por um tempo. Isso acontece comigo a maioria das vezes com meus pais. A cada quatro ou seis meses, quando os vejo de novo, sou realmente capaz de olhar para eles. No começo do dia, consigo ver como envelheceram, mas, no fim do dia, já voltei a enxergá-los como rostos familiares. A fotografia pode realmente facilitar a ideia de ver plenamente, por causa de como pode se preocupar com detalhes precisos.
C&AL: As imagens são tão privadas, no caso do mamilo de Ian, ele é anatômico, histórico e ligado ao gênero; mas talvez um mamilo nunca seja apenas um mamilo.
EP: Acabo de terminar a ler King Leopold’s Ghost (O fantasma do rei Leopoldo), de Adam Hochschild, sobre as atrocidades cometidas pelo rei da Bélgica no Estado Livre do Congo. Achei interessante ver como a fotografia, especificamente a de pessoas aterrorizadas e seus corpos mutilados, era utilizada por quem lutava contra as atrocidade, e como outros utilizavam fotografias da paisagem exuberante e retratos arrumadinhos para criar propaganda pró-imperial. Também penso sobre quantas imagens de corpos têm sido feitas com o propósito de subjugar as pessoas. A relação da história com as imagens contemporâneas é o que busco alcançar, tendo plena consciência e, de certa forma, controle sobre minha obra.
Pensando novamente sobre o mamilo de meu parceiro e onde ele está localizado numa história mais ampla de imagens, lembro de ter visto o registro de tumores cerebrais do neurocirurgião Harvey Cushing, enquanto estava em Yale. O registro contém entre dez mil e quinze mil negativos de fotos de pacientes de tumor cerebral antes e depois da cirurgia. São retratos vulneráveis e absolutamente surpreendentes. As imagens são esteticamente belas e têm uma tensão desestabilizadora, porque você sabe que estão sendo feitas para o propósito pseudocientífico de documentar deformidades. Então, quando faço essa imagem do amado mamilo de meu parceiro, que para ele representa uma afirmação de si mesmo, também tenho o desejo pessoal de um dia ter as mesmas marcas para mim mesma, como resultado de minha própria cirurgia de alto nível, estou interessada em como isso perturba e flerta com a complicada história das imagens.
C&AL: Estou interessada na construção da identidade; ela já existe, ou vocês a constroem em conjunto?
EP: Acho que, em certos momentos, sim, ela está nas fotografias de luta livre, que tratavam de fornecer uma camada adicional de validação a uma identidade performática. Naquela ocasião, a fotografia ajudou a levar de maneira convincente a meta do lutador de representar sua identidade a um outro nível, pois permitiu que fosse introduzido um tipo diferente de “realidade” – uma que a fotografia é capaz de construir. Também penso nisso em relação a minhas imagens de e com meu parceiro Ian. Há múltiplas camadas de construção negociadas dentro de cada imagem depois que ela foi feita, por exemplo, como ele se sente em relação à fotografia, como eu me sinto em relação a ela, se ela funciona ou não simplesmente como fotografia, e as diversas formas através das quais aquele poder é negociado. É definitivamente um processo colaborativo de construção da imagem em conjunto, pois elas não existiriam sem ele.
C&AL: Como você investiga sua própria identidade em sua obra?
Muitas das narrativas da mídia sobre o furacão em Porto Rico falavam sobre conseguir ajuda o mais cedo possível. Era um uso estratégico de um certo tipo de narrativa. É como o que Gayatri Spivak diz sobre “essencialismo estratégico”, e como à vezes é politicamente útil apoiar-se em mitos essenciais para realizar algo pelo mero senso de realização; não usá-los como uma verdade, mas para ajudar a conseguir algo. A cidadania porto-riquenha é problemática e desperta sentimentos compactados sobre o que seja cidadania.
Há uma oscilação eterna entre essas identidades, elas são as mesmas hoje e não sei o que serei daqui a três anos. Passei a apreciar muito o e em vez do ou. Esse espaço é como a identidade nasce e uma forma de continuar expansiva e, ao mesmo tempo, reconhecer que há alguns fatos sobre minha experiência no mundo e não quero agir como se eles não existissem, pois existem.
Elle Pérez é artista do Bronx, Nova York, leciona fotografia na Universidade Harvard e é decana da Escola Skowhegan de Pintura e Escultura. A obra de Pérez ficará exposta no MoMA PS1 até 3 de setembro de 2018.
Nan Collymore é escritora e artista britânica, radicada na Califórnia.
Traduzido do inglês por Renata Ribeiro da Silva.