A artista mexicana Naomi Rincón Gallardo formula uma crítica ao eurocentrismo, ao extrativismo e ao credo do desenvolvimento a partir de uma perspectiva feminista, decolonial e antirracista. A C&AL conversou com Rincón Gallardo sobre seu trabalho e sobre sua participação na 11ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim.
Naomi Rincón Gallardo. Resiliência Tlacuache. 2019. Vídeo HD. 16'01''. Foto: Claudia López Terroso
C&AL: Que temas você se interessa em abordar em seu trabalho?
Naomi Rincón Gallardo: Eu me considero uma artista feminista, decolonial e antirracista. A mim interessa o que chamo de “criação de contramundos”, ou mundos alternativos no Sul Global, especificamente no México, uma criação que, no entanto, encontra ressonância em outras localidades e tem relação com o Norte Global. Tenho trabalhado em torno das demandas e da defesa, por parte das mulheres racializadas, da autodeterminação de seus corpos, seus territórios e seus corpos-territórios. Também abordo os processos de extrativismo, dominação ou controle sobre os corpos. Me interessam as formas de contar histórias impulsionadas a partir do desejo. E tudo é lido a partir de uma lente queer, que dá espaço à fantasia, aos sonhos, aos afetos. Colaboro com muitas pessoas e considero esse um trabalho de pesquisa, onde vou ordenando e articulando diferentes curiosidades e métodos que vinculo artesanalmente e nos quais se materializam certos interesses e influências teóricas.
C&AL: O que o feminismo decolonial e antirracista significa para você?
NRG: Quando falo sobre feminismo antirracista e decolonial, me refiro a um feminismo que não apenas se preocupa com questões de gênero, mas busca desmantelar modos assimétricos historicamente estabelecidos. “Decolonial” entendo como uma série de práticas e teorias que foram geradas no Sul Global e que tentam entender o decolonial como uma prática e uma teoria encarnada, que pode ser cheirada, dançada, que vem de corpos específicos. O feminismo decolonial entendo como um feminismo que tenta ouvir, ser orientado, aprender, fazer outro tipo de política, e que apoie e construa alternativas e resistência às práticas epistêmicas e aos modos de vida que têm o Norte Global como seu farol. Quando falo de um feminismo antirracista e decolonial, eu me refiro a um feminismo que busca desfazer o eurocentrismo e a imagem autoimposta de superioridade da brancura europeia e do norte geopolítico.
C&AL: Como isso se reflete em seu trabalho?
NRG: Há uma perspectiva crítica em relação ao eurocentrismo, ao extrativismo e ao credo do desenvolvimento, pois eles se baseiam no controle de outros povos e em uma suposta superioridade baseada na violência. É isso que quero salientar e tento desmontar, acolhendo outras formas de relacionamento dentro dos processos de trabalho e chamando por vozes que foram silenciadas: vozes de mulheres que lutaram, que resistem, que defendem seu direito à voz, ao território e à autodeterminação.
C&AL: Em quais projetos você está envolvida atualmente?
NRG: Considero meus últimos trabalhos uma trilogia, e ela aborda figuras femininas que resistem ou se rebelam contra processos de extrativismo, nos quais a vida está intimamente ligada à possibilidade de morte prematura, uma vez que locais expostos a processos de extração criam conflitos territoriais e de expropriação. Essas formas de expropriação expõem populações inteiras à toxicidade, a disputas muitas vezes violentas pelo controle de territórios e a processos de militarização e paramilitarização que criam vulnerabilidades e nos quais certas formas de vida e de corpos são convertidas em coisas descartáveis. A morte prematura ou o aumento da vulnerabilidade estão presentes em processos necropolíticos, onde se decide quem vai morrer e quem pode ser matável e intoxicável.
C&AL: Conte-nos sobre o trabalho com o qual você participa da Bienal de Arte Contemporânea de Berlim em 2020.
NRG: Esse trabalho se chama Resiliência Tlacuache e é inspirado por uma série de entrevistas que realizei com uma ativista zapoteca em Oaxaca, México, que está envolvida na defesa de um território onde uma empresa canadense construiu uma mina. Essa mulher sofreu um atentado em uma emboscada e sobreviveu. Resiliência Tlacuache é um trabalho ficcional, no qual convergem quatro personagens que se encontram em um território ameaçado pela mineração. Escolhi tlacuache [nome dado no México e na América Central aos gambás], porque chamam de “tlacuachitos” aquelas pessoas que suportam muitos ataques e golpes: esses animais, quando tentam roubar galinhas, são espancados, mas eles têm a capacidade de se fingir de mortos. Assim, na emboscada pensaram que tinham conseguido acabar com a vida da ativista, mas ela conseguiu se salvar. É um trabalho que sobrepõe a criação do mundo ao conflito mineiro e que se alimenta de mitos centro-americanos.
C&AL: O que significa para você integrar a programação da Bienal de Berlim, que este ano é marcada pela pandemia do coronavírus e pelas limitações de movimento a ela associadas?
Estou contente. Me emociona muito, mas fico triste que a Bienal este ano ocorra nessas circunstâncias. Eu gostaria de ir para Berlim. Fico feliz em trabalhar com um grupo de curadorxs que se posiciona como feminino.
C&AL: De que maneira os eventos pelos quais o planeta está passando – a pandemia e as diversas crises locais e internacionais associadas a ele – afetaram seu trabalho?
NRG: O México enfrenta atualmente uma grave crise econômica, que a pandemia exacerbou. Isso afetou muito a comunidade artística e cultural, cujas condições de trabalho são muito precárias. Atualmente faço parte do Sistema Nacional de Criadores de Arte 2019-2022, do Fundo Nacional de Cultura e das Artes do México, e esse apoio me permitiu continuar produzindo. Mas esses momentos tornaram ainda mais claras ideias sobre as quais eu já vinha pensando e com as quais vinha trabalhando: a opção de uma vida mais simples, buscar outras formas de sustentabilidade no cotidiano, mudar certas prioridades e modos de vida.
Naomi Rincón Gallardo é membro do Sistema Nacional de Criadores de Arte 2019-2022, do Fundo Nacional de Cultura e das Artes do México. Concluiu recentemente seu doutorado na Academia de Belas Artes de Viena. Graduada em Artes Plásticas pela ENPEG “La Esmeralda” e mestre em Educação, Cultura, Linguagem e Identidade pela Crossectoral-Community Arts da Goldsmiths, de Londres. Além de se dedicar à sua produção artística, participa de projetos educacionais e comunitários como professora e pesquisadora. Em 2019 participou da oitava edição da plataforma internacional Experimenta/Sur 2019, organizada pelo Goethe-Institut no âmbito do ano temático “Humboldt e as Américas”, com a performance “A jornada do formol”. Atualmente reside na Cidade do México.
Marie-Louise Stille realizou a entrevista. Gestora cultural e colaboradora da C&AL, vive em Berlim.
Tradução: Cláudio Andrade