Conversa com Juliana dos Santos

“O saber ancestral que vem dos pés”

A artista visual brasileira fala sobre suas teorias a respeito do samba, do corpo negro e da ciência. E explica também o conceito de “sambiência”. Fabiana Lopes conversou com Juliana dos Santos para a Contemporary & (C&) América Latina.

C&AL: O que te levou a fazer esse registro? O que te atraiu nesse “evento” do homem negro dançando na rua?

JS: O que me atraiu foi a conexão com a minha história. Seu Djalma é como um dos fregueses do bar da minha avó. Sou nascida e criada num bairro paulista (Parque Peruche), onde o samba tem uma presença muito forte. Nasci sambando na barriga da minha mãe. Gosto muito de sambar, sempre gostei. Sambar é um saber herdado do meu pai. Esses corpos negros em movimento me interessam. O samba é uma ação contranormativa. Acredito que hoje as pessoas sambam pouco. Mas esse homem ali, sambando sem hora para acabar, é um evento revolucionário. Seu Dajalma está comprometido com estar vivo, presente, em relação, flertando no palco emprestado da calçada de onde ele samba para todo mundo ver, ele samba para a vida. Ele é abusado, não está nem aí. No miudinho, ele já rodou o mundo sem sair do lugar. A gente devia sambar mais para celebrar a vida. É isso que a Irmandade propõe e as pessoas que moram ali também.

C&AL: Você costuma usar a expressão “em estado de samba”…

JS: Sim, tenho pensado muito nisso. Para mim, “estado de samba” é um estado de ser, estar e agir no mundo. Tem samba alegre, samba triste, samba solto, samba junto. Fulano está sambando com a minha cara! Chega no sapatinho! Chega no miudinho! A população negra no Brasil criou muito samba, tem samba no Brasil todo. Veja se não é um estado de ser, uma elaboração de saber! A partir do passo básico, a gente faz tudo. Tem o Samba de Roda no recôncavo [baiano], Samba de Pareia em Laranjeiras, Sergipe; em Pernambuco tem Samba de coco, Cavalo Marinho de Maracatu. No Maranhão tem Tambor de Criola que não tem nome de samba mas os pés e o meneio do quadril estão lá. No Espírito Santo tem as Guardas de Congo Capixaba. Me fala se o samba não vem dalí também? No Rio de Janeiro tudo é samba. São Paulo também tem muito samba, Samba de Bumbo Pirapora, Pagode. Até samba com rock a geração do meu pai conseguiu juntar (risos).

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Sambiência, Juliana dos Santos, 2018.

C&AL: Como você descreve sua pesquisa artística até aqui?

JS: Eu a descrevo como ritmo constante. São muitas pesquisas e não paro de pensar. Tenho pesquisado muito sobre negritude, racismo, decolonização, mas também sobre espacialidade, corporeidade, ocupação de espaços e deslocamentos de imaginários. Alguns dos meus trabalhos são autobiográficos, como um processo de tentar entender de onde venho e para onde vou. Comecei no desenho, daí fui para o teatro, depois dancei profissionalmente por dois anos. Em seguida, me interessei pela música, no Afoxé. Tenho muito interesse por música. Minha gama de interesses é um universo muito amplo. Às vezes me perco, mas o processo faz sentido, não gosto da fragmentação das áreas. Na faculdade, vivia no teatro e na dança, mas estudava Artes Visuais. Gosto das “manualidades”, de pesquisa técnica, de experimentar materiais. Isso não aparece nos meus trabalhos ainda, mas gosto muito de pintura, desenho e fotografia analógica. Mas a sambiência é algo que está muito mais na vida e menos no trabalho artístico.

C&AL: Você vê alguma relação entre esse registro sobre o qual falamos, esse material, e o trabalho que você tem feito até o momento?

JS: Diretamente não, mas sei que existe uma relação. Esse material tem a ver com alguns projetos de instalações e intervenções que ainda não realizei. O trabalho mais destacado de minha produção é a videoperformance Qual é o pente? Nela, trago à discussão o corpo de duas mulheres negras vivenciando um processo que perpassa por violência, memória, afetividade e resistência. Esse trabalho é tristeza, é dor, mas quero trabalhar com alegria também. Daí vejo o Seu Djalma, um corpo negro de um senhor sambando sem parar, na festa, no fervo, de chinelo. O que aqueles pés poderiam nos dizer sobre essa caminhada? Basta ver como eles se resolvem em cadência e leveza. O Seu Djalma sambando é a antítese do Qual é o pente? Ele propõe possibilidades outras de representação de corpos negros: teve dor, tem dor, mas tem frevo, tem fluxo, tem alegria, tem sambiência. Esse material me faz lembrar de uma frase de Alice Walker que impactou muito minha vida: “Tempos difíceis requerem danças furiosas”.

C&AL: Me fale um pouco sobre esse “close” nos pés, sobre esse pequeno vídeo focado apenas nos pés do Seu Djalma.

JS: Esse foco nos pés veio de minha necessidade de tentar capitar o elemento básico no samba: os pés. Me interessa como eles se resolvem no espaço a partir de um movimento modular que se repete formando um “continum”. Ele sai de cena e depois volta. Ao mesmo tempo, vejo os pés como metáfora da caminhada da vida. Durante minha viagem para Havana, no ano passado, consultei o Ifá num babalorixá. Ele me disse que, para Ifá, existem três cabeças: cabeça-cabeça, cabeça-estômago e cabeça-pés. E elas simbolizam a mente, o desejo, o caminho. Para ele, a vida tem que ser o equilíbrio entre essas três cabeças. Isso fez tanto sentido para mim!

Quantas vezes a cabeça-pé fica de fora das decisões. Em minha casa, os pés sempre foram alvo de muita atenção. Minha avó costumava dizer: “preto tem que andar com sapato limpo, não vai sair com pé de barro”. Minha escolha desse recorte, desse material, vem de tudo isso, acho. É como se fossem os pés que decidissem o destino. Ali são eles quem mandam. Quem manda no ato de sambar são os pés. Se você pensar muito, não consegue fazer o movimento. Você precisa sentir o ritmo, perceber onde ele bate e deixar os pés livres. Então esses vídeos têm isso: os pés do Seu Djalma, eles são a narrativa.

Juliana dos Santos é artista visual com trabalhos nas linguagens de vídeo, performance, fotografia e multimídia. É mestre em arte-educação e mediação cultural pelo Instituto de Artes da Unesp (São Paulo) e pesquisadora nas áreas de em arte-educação e cultura afro-brasileira. 
 
Fabiana Lopes é curadora independente, baseada em Nova York e São Paulo, doutoranda em Estudos da Performance na Universidade de Nova York, na qual é bolsista do Corrigan Fellowship Program. Lopes tem interesse pela produção artística da América Latina e atualmente pesquisa a produção de artistas negros no Brasil.

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