A artista visual brasileira fala sobre suas teorias a respeito do samba, do corpo negro e da ciência. E explica também o conceito de “sambiência”. Fabiana Lopes conversou com Juliana dos Santos para a Contemporary & (C&) América Latina.
Sambiência, Juliana dos Santos, 2018.
Qual é o pente?, videoperformance, Juliana dos Santos, 15:57, 2016.
C&AL: Na última vez em que conversamos em seu ateliê, você me mostrou um registro em vídeo do Seu Djalma, um homem negro dançando na rua no que parecia uma espécie de “evento” interminável. Esse registro é de quando?
JS: O registro do Seu Djalma dançando foi feito quando fui para Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, para a Festa da Irmandade da Boa Morte – uma confraria católica de mulheres negras idosas que se organizam há mais de 200 anos. Elas são um símbolo de articulação religiosa, com grande mobilização política e cultural na cidade. E organizam as festividades com muito samba de roda. Cahoeira é a cidade das “sambadeiras”. Para mim, era muito importante ir até lá principalmente pelo samba e por conta dessa articulação de mulheres negras através desses ritos de ancestralidade, suas práticas de ocupação das igrejas e ruas. Esse é um grande evento no sentido de suspensão do tempo para cuidar das almas: comendo, rezando e sambando. Fiquei encantada com o fato de Seu Djalma não parar de sambar. O dançar dele era algo cadenciado e cheio de graça. Ele estava ali, na calçada em frente à casa da Irmandade, num meneio de quadril sem igual. Era um estado de ser.
O samba é um estado de ser e estar no mundo e não só uma música ou uma dança. O samba é verbo e não substantivo. Seu Djalma materializou isso naquele momento. Uma forma de ser e estar no mundo, uma espécie de presentificação, uma metáfora da vida. Ele foi um ponto, mas Cachoeira é assim. Na festa da Irmandade, é tudo e todo mundo sambando. O tempo todo fica lá o som na praça, a gente se acabando. Tem um grupo ali, outro aqui, na sabença do samba, na ciência do samba, na sambiência. Foi assim que cheguei a esse termo. Seu Djalma representou ali, para mim, essa sambiência, esse saber ancestral que vem dos pés. E a gente nunca sabe como aprendeu a sambar. Mas cada um samba de um jeito.
C&AL: O que te levou a fazer esse registro? O que te atraiu nesse “evento” do homem negro dançando na rua?
JS: O que me atraiu foi a conexão com a minha história. Seu Djalma é como um dos fregueses do bar da minha avó. Sou nascida e criada num bairro paulista (Parque Peruche), onde o samba tem uma presença muito forte. Nasci sambando na barriga da minha mãe. Gosto muito de sambar, sempre gostei. Sambar é um saber herdado do meu pai. Esses corpos negros em movimento me interessam. O samba é uma ação contranormativa. Acredito que hoje as pessoas sambam pouco. Mas esse homem ali, sambando sem hora para acabar, é um evento revolucionário. Seu Dajalma está comprometido com estar vivo, presente, em relação, flertando no palco emprestado da calçada de onde ele samba para todo mundo ver, ele samba para a vida. Ele é abusado, não está nem aí. No miudinho, ele já rodou o mundo sem sair do lugar. A gente devia sambar mais para celebrar a vida. É isso que a Irmandade propõe e as pessoas que moram ali também.
C&AL: Você costuma usar a expressão “em estado de samba”…
JS: Sim, tenho pensado muito nisso. Para mim, “estado de samba” é um estado de ser, estar e agir no mundo. Tem samba alegre, samba triste, samba solto, samba junto. Fulano está sambando com a minha cara! Chega no sapatinho! Chega no miudinho! A população negra no Brasil criou muito samba, tem samba no Brasil todo. Veja se não é um estado de ser, uma elaboração de saber! A partir do passo básico, a gente faz tudo. Tem o Samba de Roda no recôncavo [baiano], Samba de Pareia em Laranjeiras, Sergipe; em Pernambuco tem Samba de coco, Cavalo Marinho de Maracatu. No Maranhão tem Tambor de Criola que não tem nome de samba mas os pés e o meneio do quadril estão lá. No Espírito Santo tem as Guardas de Congo Capixaba. Me fala se o samba não vem dalí também? No Rio de Janeiro tudo é samba. São Paulo também tem muito samba, Samba de Bumbo Pirapora, Pagode. Até samba com rock a geração do meu pai conseguiu juntar (risos).
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C&AL: Como você descreve sua pesquisa artística até aqui?
JS: Eu a descrevo como ritmo constante. São muitas pesquisas e não paro de pensar. Tenho pesquisado muito sobre negritude, racismo, decolonização, mas também sobre espacialidade, corporeidade, ocupação de espaços e deslocamentos de imaginários. Alguns dos meus trabalhos são autobiográficos, como um processo de tentar entender de onde venho e para onde vou. Comecei no desenho, daí fui para o teatro, depois dancei profissionalmente por dois anos. Em seguida, me interessei pela música, no Afoxé. Tenho muito interesse por música. Minha gama de interesses é um universo muito amplo. Às vezes me perco, mas o processo faz sentido, não gosto da fragmentação das áreas. Na faculdade, vivia no teatro e na dança, mas estudava Artes Visuais. Gosto das “manualidades”, de pesquisa técnica, de experimentar materiais. Isso não aparece nos meus trabalhos ainda, mas gosto muito de pintura, desenho e fotografia analógica. Mas a sambiência é algo que está muito mais na vida e menos no trabalho artístico.
C&AL: Você vê alguma relação entre esse registro sobre o qual falamos, esse material, e o trabalho que você tem feito até o momento?
JS: Diretamente não, mas sei que existe uma relação. Esse material tem a ver com alguns projetos de instalações e intervenções que ainda não realizei. O trabalho mais destacado de minha produção é a videoperformance Qual é o pente? Nela, trago à discussão o corpo de duas mulheres negras vivenciando um processo que perpassa por violência, memória, afetividade e resistência. Esse trabalho é tristeza, é dor, mas quero trabalhar com alegria também. Daí vejo o Seu Djalma, um corpo negro de um senhor sambando sem parar, na festa, no fervo, de chinelo. O que aqueles pés poderiam nos dizer sobre essa caminhada? Basta ver como eles se resolvem em cadência e leveza. O Seu Djalma sambando é a antítese do Qual é o pente? Ele propõe possibilidades outras de representação de corpos negros: teve dor, tem dor, mas tem frevo, tem fluxo, tem alegria, tem sambiência. Esse material me faz lembrar de uma frase de Alice Walker que impactou muito minha vida: “Tempos difíceis requerem danças furiosas”.
C&AL: Me fale um pouco sobre esse “close” nos pés, sobre esse pequeno vídeo focado apenas nos pés do Seu Djalma.
JS: Esse foco nos pés veio de minha necessidade de tentar capitar o elemento básico no samba: os pés. Me interessa como eles se resolvem no espaço a partir de um movimento modular que se repete formando um “continum”. Ele sai de cena e depois volta. Ao mesmo tempo, vejo os pés como metáfora da caminhada da vida. Durante minha viagem para Havana, no ano passado, consultei o Ifá num babalorixá. Ele me disse que, para Ifá, existem três cabeças: cabeça-cabeça, cabeça-estômago e cabeça-pés. E elas simbolizam a mente, o desejo, o caminho. Para ele, a vida tem que ser o equilíbrio entre essas três cabeças. Isso fez tanto sentido para mim!
Quantas vezes a cabeça-pé fica de fora das decisões. Em minha casa, os pés sempre foram alvo de muita atenção. Minha avó costumava dizer: “preto tem que andar com sapato limpo, não vai sair com pé de barro”. Minha escolha desse recorte, desse material, vem de tudo isso, acho. É como se fossem os pés que decidissem o destino. Ali são eles quem mandam. Quem manda no ato de sambar são os pés. Se você pensar muito, não consegue fazer o movimento. Você precisa sentir o ritmo, perceber onde ele bate e deixar os pés livres. Então esses vídeos têm isso: os pés do Seu Djalma, eles são a narrativa.
Juliana dos Santos é artista visual com trabalhos nas linguagens de vídeo, performance, fotografia e multimídia. É mestre em arte-educação e mediação cultural pelo Instituto de Artes da Unesp (São Paulo) e pesquisadora nas áreas de em arte-educação e cultura afro-brasileira. Fabiana Lopes é curadora independente, baseada em Nova York e São Paulo, doutoranda em Estudos da Performance na Universidade de Nova York, na qual é bolsista do Corrigan Fellowship Program. Lopes tem interesse pela produção artística da América Latina e atualmente pesquisa a produção de artistas negros no Brasil.