Arte urbana

Projeto Morrinho dá forma às narrativas de grupos marginalizados

Obras etnobiográficas, instalações ficcionalizadas ou simplesmente trabalhos que fazem ruir o muro entre o documental e a ficção? As ferramentas usadas pelo Projeto Morrinho, no Rio de Janeiro, catalisam e ressignificam, em linguagem audiovisual, o imaginário da comunidade e de seu entorno.

Autoria coletiva

A direção de arte esmera-se nos detalhes. No vídeo A piscina do Peri, um pote de margarina é o tanque onde os bonecos nadam. Em Bicicletada no Morrinho, um Lego-ciclista é atropelado pelo blindado do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope, vizinho do Pereirão. Um boneco do ex-presidente Michel Temer é sequestrado em A guerrilha na esplanada. Lego-guerrilheiros revolucionários exigem “bom emprego, boa educação, transporte público com ar condicionado”. Em A Revolta dos bonecos, a metalinguagem domina: bonecos de Lego descobrem que os rapazes vão viajar para uma exposição, mais uma vez, sem eles, e se queixam de injustiça. O que se segue é uma discussão sobre autoria numa obra de arte coletiva.

Tanto na brincadeira quanto nas cenas dos vídeos, as regras são rigorosas. Lances fora da realidade são proibidos. “Não é jogo de super-herói”, lembra Cirlan. Voar, dar saltos maior do que um palmo, ou correr mais rápido que um carro são ações vetadas. Um árbitro fica atento a cada lance, a fim de fazer cumprir as regras do Morrinho.

Fora da favela, não se conhecia o Morrinho. Durante a cobertura de uma guerra entre facções rivais, porém, repórteres de um jornal sensacionalista do Rio de Janeiro descobriram a maquete. A matéria, publicada em 1999, insinuava que traficantes usavam a miniatura para planejar rotas de fuga. O mundo das artes, no entanto, saudou a descoberta dos meninos do Pereirão. Nos dois anos seguintes, Cirlan frequentou os cursos de arte da ONG Recuperar-te, ministrados pelo escultor Sergio Cesar, conhecido pelos cenários de favela feitos em papelão.

O potencial artístico das maquetes

A metamorfose de brinquedo em linguagem audiovisual aconteceu em 2001. A filmagem do documentário Morrinho, Deus sabe tudo, mas não é X-9, de Fábio Galvão e Markão Oliveira, foi acompanhada de uma oficina de vídeo e de um trabalho de conscientização sobre o potencial artístico, político e social da maquete. A verve livre da brincadeira de faz de conta na maquete foi levada para a produção audiovisual do Morrinho.

Difícil é enquadrar os trabalhos em algum gênero. Podemos considerá-lo como obras documentais etnobiográficas. Virando a produção do avesso, encontramos pistas de documentários ficcionalizados e vice-versa. Um olhar maios atento e percebemos que o muro entre o documentário e a ficção desmorona. Por todos os ângulos, no entanto, o que vem à tona é um conjunto de procedimentos narrativos que catalisa de forma singular o imaginário da comunidade e o ressignifica em linguagem audiovisual.

Não tardou para o Projeto Morrinho virar referência de arte urbana. Os “arquitetos” do Pereirão começaram a ser contratados para construir réplicas da maquete em espaços que vão de vitrine de lojas, como no Rio Design Center, em 2002, até o Museu de Arte do Rio, o MAR, em 2013. Eles ministram workshops e expõem na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul. Em 2007, foram convidados a expor a maquete nos jardins da 52ª Bienal de Artes de Veneza. Nesse mesmo ano, o vídeo O saci no Morrinho ganhou prêmio de melhor filme no Festival Visões Periféricas, no Rio. Acadêmicos do Morrinho recebeu o prêmio “Curta o curta” no Festival Internacional de Curtas de São Paulo. E a Nickelodeon exibiu, durante seis meses, quatro vídeos feitos para o canal de TV.

Anna Azevedo é jornalista, artista e curadora interessada na interseção entre cinema e artes visuais.

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