Em comemoração aos 10 e 5 anos da C& e C&AL, respectivamente, visitamos o estúdio de Julianny, onde a artista explora a identidade caribenha a partir de perspectivas indígenas, afrodescendentes e femininas. Por meio de escultura e pintura, ela reimagina artefatos e arquivos, promovendo diálogos sobre memória, continuidade e resistência dentro da cena artística da ilha.
Estúdio de Julianny Ariza Vólquez em Santo Domingo, RD. Fotos: Marny Garcia Mommertz.
Em nítido contraste com as movimentadas ruas de Santo Domingo, na República Dominicana, uma sensação de tranquilidade tomou conta de mim ao entrar na casa de Julianny Ariza Vólquez. Fui recebida em um estúdio aconchegante e espaçoso no centro do apartamento dela, localizado em um bairro de classe média. Na varanda, a artista havia disposto petiscos caseiros em meio a uma vegetação exuberante, enquanto o suave aroma de orégano cubano pairava pelo ambiente de trabalho e pela sala. Meu olhar foi atraído para as paredes, onde telas com paisagens místicas em tons neutros se espalhavam, chegando até os cavaletes de madeira. Algumas já estavam finalizadas, enquanto outras aguardavam o toque final de Vólquez ou estavam enroladas para armazenamento.
Estúdio de Julianny Ariza Vólquez em Santo Domingo, RD. Detalhe “Baobab (2023)”, da série “No-Objects”, óleo sobre tela. 32“ x 25”, 2021-2023. Fotos: Marny Garcia Mommertz.
Essas obras fazem parte da série No-Objetos (2021-2023), inspirada no conceito de Non-Places (Não-lugares) do antropólogo e etnólogo francês Marc Augé, que descreve esses espaços como desprovidos de identidade significativa, sentido histórico ou relações sociais no discurso oficial. Nessa série, Vólquez recria artefatos taínos e africanos de arquivos históricos, com o intuito de humanizá-los em espaços imaginados, revertendo a objetificação promovida pela colonização e seus agentes.
“Meu trabalho explora exercícios de recuperação e coexistência das identidades indígena, afrodescendente e feminina”, declarou a artista. “Por meio de esculturas, instalações e pinturas, coloco em diálogo e em atrito materiais representativos das principais culturas que habitaram o Caribe insular.” O trabalho com arquivos e coleções ocupa um lugar central em sua prática artística. Seus temas são inspirados por artefatos encontrados em coleções privadas e arqueológicas nos Estados Unidos e na República Dominicana, alguns dos quais ela reinterpreta em suas esculturas. Enquanto estávamos sentadas em sua mesa, revisando alguns de seus trabalhos mais recentes com imagens em movimento, notei uma pequena escultura que lembrava um monumento. A peça La Muerte del Chivo faz parte da instalação Artesoro (2020-2021), uma continuação de sua investigação sobre coleções domésticas e museológicas, explorando como essas coleções influenciam a memória coletiva.
Estúdio de Julianny Ariza Vólquez em Santo Domingo, RD. Detalhe “A morte da cabra”, óleo sobre tela, 12“ x 24”, 2023. Fotos: Marny Garcia Mommertz.
Meu trabalho explora exercícios de recuperação e coexistência das identidades indígena, afrodescendente e feminina.
Para Artesoro, Vólquez acessou os arquivos de dois museus: a coleção arqueológica do Centro León e a coleção de Cerâmica Europeia do Museu da Porcelana. Ela se concentrou em peças taíno que não estavam expostas e interpretou a hierarquia e as narrativas emergentes da interação entre os artefatos. “Também busquei peças minoritárias nas coleções”, disse. “No caso do Centro León, foi um vaso efígie antropozoomórfico feminino, enquanto no Museu da Porcelana, encontrei uma peça que representava uma pessoa de ascendência africana.” Nesse trabalho, a artista recontextualiza ordens sociais hierárquicas e patriarcais, propondo uma narrativa de continuidade e sincretismo, onde as estéticas indígenas, afro-diaspóricas e europeias coexistem, ao mesmo tempo em que promovem as visões de mundo das comunidades locais originárias da República Dominicana.
Julianny Ariza Vólquez, Desenhos de “Aquellas tres mareas”, 2023. Dirigido por Julianny Ariza Vólquez e Jeremy García. Direção de fotografia: Nana Báez.
Ao lado da pequena estátua La Muerte del Chivo, avistei uma máscara de madeira usada em sua obra de vídeo inédito Aquellas Tres Mares, que ainda estava na fase de edição durante a minha visita. As máscaras foram enviadas a ela no contexto de sua residência digital You Better Say Our Names: Home-Based Residencies, organizada pelo Escritório de Arte Contemporânea da Noruega, na qual ela trocou experiências com o artista conceitual zambiano Benny Blow. Embora o vídeo seja um meio novo para Vólquez, seu trabalho anterior ecoa nas imagens estáticas que ela compartilhou comigo, à medida que artefatos de porcelana, que inspiraram suas pinturas e esculturas anteriores, ressurgem. O vídeo foi financiado com suas economias e as aulas de arte que ela ministra. Além de sua prática artística, Vólquez cofundou a ONTO, uma publicação artística criada por um grupo de artistas e pessoas que gestal a cultura. A revista busca abordar questões da cena artística local da República Dominicana, como a falta de publicações especializadas e os desafios relacionados à fraca institucionalização do setor.
stúdio de Julianny Ariza Vólquez em Santo Domingo, RD. Detalhe “Baobab (2023)”, da série “No-Objects”, óleo sobre tela. 32“ x 25”, 2021-2023. Fotos: Marny Garcia Mommertz.
Meses após minha visita ao estúdio de Vólquez, seu trabalho ainda ressoa em mim, especialmente quando penso sobre seus esforços para representar vozes marginalizadas frente a um sistema que permanece violento e repressivo. Essas vozes são fundamentais para o diálogo em torno da arte contemporânea e da identidade na República Dominicana. Apesar de todas as adversidades, essas vozes estão aqui para ficar.
Nota: Esta visita ocorreu em novembro de 2023 e fez parte de uma série de visitas a estúdios organizada pela Editora Associada da C&AL, Yina Suriel Jiménez. Artistas como Eliazar Ortiz Roa, Fidel Ernesto, Digno Roa, Tiempo de Zafra e Yessica Montero nos receberam.
Julianny Ariza Vólquez (n. 1987, Santo Domingo, República Dominicana) é artista visual que reimagina modelos excludentes no âmbito da memória material dominicana através de esculturas, instalações e pinturas. Ela foi uma das artistas convidadas para a residência Artpace San Antonio no Texas, EUA (julho-setembro de 2024). Em 2024, apresentou a obra de vídeo-arte Those Three Tides na Galeria Nacional de Arte de Livingstone, Zâmbia
Marny Garcia Mommertz (ela/dela) é escritora e artista que explora formas experimentais de arquivamento dentro da diáspora e investiga a vida da artista e ativista negra Fasia Jansen, sobrevivente do Holocausto na Alemanha. Atualmente, sua prática artística foca em montagem. Ela é managing editor da C&AL.
Tradução: Jess Oliveira.