Caribe

O projeto que reúne artistas do Haiti e da República Dominicana

A Sol Scène é uma associação cultural haitiana que intenta promover a mudança social consciente através da arte. Seu projeto RCHD visa o incentivo de diálogos, cooperações e da fraternidade entre pessoas do Haiti e da República Dominicana. Liderado por Daphné Menard, a associação destaca o poder de transformação da arte ao abordar as antigas cisões entre as comunidades vizinhas.

C& América Latina: Qual sua avaliação da última edição do projeto?

Daphné Menard: Trabalhar no Haiti é como trabalhar em uma ilha em movimento. A insegurança que temos enfrentado nos forçou a cancelar várias atividades que tínhamos planejado para a edição anterior. A maioria delas deveria ter acontecido em escolas e universidades no Haiti. Muitas das conferências, exibições de filmes, oficinas e encontros que tínhamos planejado tiveram que ser transferidos para a República Dominicana, o que, por si só, já foi um desafio. No momento presente, trabalhar atravessando fronteiras é especialmente desafiador devido à atual situação sociopolítica, que dificulta a conexão da logística entre os dois países. Mas, apesar dessas dificuldades, o evento foi impactante e, nas atividade que tivemos, fizemos tudo funcionar. Os comentários que recebemos de artistas e participantes em geral foi certamente encorajador.

C&AL: A edição do ano passado foi inspirada pelo tema “Anacaona: mulher e resistência”. O que nos espera em 2023?

DM: A próxima edição girará em torno da obra de Jacques Viau, um jovem poeta haitiano-dominicano que morreu em 1965, enquanto lutava contra a ocupação estadunidense da ilha na época. Sua história é muito interessante, pois ele nasceu no Haiti e, aos oito anos, mudou-se para a República Dominicana, onde foi criado. Estamos planejando uma exposição sobre sua vida e esperamos conseguir realizá-la no Haiti, pois, apesar de sua obra ser bem conhecida na República Dominicana, a maioria das pessoas no Haiti não sabe nada sobre ele.

Sua obra é também muito impressionante para um jovem poeta. Ela toma a ilha como tema e aborda a fraternidade entre os dois países e seu povo. Viau personifica uma figura poderosa capaz de promover o diálogo entre pessoas do Haiti e da República Dominicana. Por isso escolhemos esse poeta e sua obra.

C&AL: Dando continuidade ao tema: o que podemos esperar da próxima edição em termos de atividades?

DM: Nessa edição, um dos laboratórios é, por exemplo, chamado Viau en Chanson (Viau em canção). Nele, reunimos pessoas que compõem e cantam a fim de criar algo inspirado na poesia de Viau, que será apresentado no final do projeto. Outra atividade, Viau en Movement (Viau em movimento), por exemplo, é concentrada no teatro e na dança contemporânea.

Além disso, lançaremos uma publicação que pretende ser a primeira revista de arte publicada em colaboração entre o Haiti e a República Dominicana.

C&AL: Qual o raciocínio por trás da inclusão (ou exclusão) de algumas formas de arte em detrimento de outras?

DM: Como venho de uma história de teatro, música e dança, para mim, como diretor de criação, é importante incluir essas mídias artísticas no projeto. Algo em comum entre todas elas é o corpo: o corpo está realmente no centro de todo o processo. Esse é o motivo pelo qual escolhemos não trabalhar – pelo menos por enquanto – com pintura ou outros tipos de mídia. Em vez disso, tentamos ficar no palco, em mídias cênicas nas quais o corpo está presente.

Até agora, as duplas de artistas que formamos trabalharam muito bem nessa estrutura. A língua não tem sido uma barreira por causa do corpo e sua capacidade de falar por si mesmo. O corpo tem a habilidade de expressar mais do que podemos dizer só com a linguagem: é uma chave para qualquer porta.

C&AL: Na sua opinião, como a arte – através de projetos como esses – pode ser útil para a superação dos ressentimentos entre as pessoas do Haiti e da República Dominicana?

DM: Pessoalmente acredito que esses tipos de projetos [como o RCHD] são importantes, porque estabelecem conexões humanas – não posso enfatizar isso o suficiente. Criar essa conexão humana é uma das principais coisas que nos motivam a continuar realizando esse trabalho, o que nem sempre é fácil. Realmente me interesso pelo processo da cura de traumas através da arte, eu me interesso pela ideia de que a arte pode ser uma plataforma na qual – mesmo que a cura não seja total – possamos descobrir pouco a pouco o trauma arraigado em nossas mentes e corpos; o trauma da pobreza, da colonização, e simplesmente a realidade vigente na ilha. No nosso caso em particular, acho que a arte gera a possibilidade de conectar pessoas e de que elas explorem mais a fundo a história coletiva da ilha, bem como a dos seus próprios países. Por exemplo, há coisas sobre a história do Haiti que entendo muito melhor desde que venho para a República Dominicana e o mesmo vale para artistas desse país, que me contam como estar no Haiti lhes permitiu entender melhor a sua própria história.

É importante ressaltar, porém, que essa é uma conexão que existe de forma dinâmica. Não se trata apenas de cura – trata-se também de desenvolvimento. Esses vínculos entre pessoas da ilha criam a possibilidade de desenvolver nossas redes de contatos. Estar na República Dominicana permitiu, por exemplo, que eu me conectasse com uma grande quantidade de artistas desse país e expandisse minha rede de contados pessoal e profissional. Antes disso, eu não tinha quase nenhuma conexão com o país. A ideia é de que esse intercâmbio abra a possibilidade para que outras pessoas ativas na arte façam o mesmo.

Aliás, preciso dizer que, embora eu acredite que a arte tem o potencial de chamar nossa atenção para questões importantes, também sinto que, sem nenhum apoio, falta à arte o poder necessário para fazer isso. Nenhum dos países da ilha tem qualquer tipo de fundos ou política cultural que apoie nosso trabalho. Essa falta de cooperação só dificulta o ato de lidar com os desafios logísticos que mencionei. Isso também gera um sentimento de que nossos esforços são apenas uma gota de água no oceano. Apesar disso, o que me motiva é saber que, ao inspirar apenas uma pessoa, podemos estar dando início a uma cascata de transformação.

Daphné Menard é um artista transdisciplinar e empreendedor social haitiano formado em música e teatro. Nos últimos anos, concentrou seus esforços na construção de pontes entre artistas e pessoas criativas do Haiti e da República Dominicana.

Afonso Ivens-Ferraz é um estudante de jornalismo interessado nas interseções entre arte, cultura e sociedade. Seu trabalho gira principalmente em torno de música e cinema, com uma exploração sutil de diversos temas, como identidades marginalizadas, subculturas urbanas e pós-colonialismo.

Tradução: Renata Ribeiro da Silva

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