Conversa com Aline Baiana

A arte como contrafeitiço

Em reação a crimes ambientais, Aline Baiana cria para a Bienal de Berlim uma instalação que remete aos estragos provocados pela mineração no Brasil.

C&AL: A crítica social e o pensamento político são elementos determinantes de suas criações. Poderia falar sobre isso?

AB: Sendo latino-americana e, mais especificamente, preta e brasileira, para mim, a separação entre arte e política nunca existiu. Desde o início o que me levou a fazer arte foi indignação, talvez minha motivação seja o que os Zapatistas chamam de “la digna rabia”. Meus trabalhos geralmente surgem de um incômodo, revolta ou angústia. No processo de pesquisa, que é muitas vezes doloroso, vou entendendo o porquê e a maneira de abordar isso. Tento buscar formas de questionar as ideias que sustentam este mundo e compartilhar outros mundos nos quais tais ideias são inconcebíveis. A forma que toma cada trabalho, bem como os suportes e materiais que uso, se apresentam para mim durante essa pesquisa.

C&AL: Temáticas feministas, ambientais ou ligadas a questões raciais fazem parte de seu trabalho. De que forma o atual momento brasileiro influencia concretamente sua produção nesse sentido?

AB: A situação atual no Brasil é muito grave. Há um plano de extermínio. Quando digo que em minha pesquisa busco maneiras de questionar as ideias que sustentam este mundo onde essas atrocidades acontecem, o mundo do qual falo é um mundo patriarcal e branco. E questionar as ideias que o sustentam torna-se ainda mais urgente neste momento. É preciso demolir as estruturas que nos oprimem e permitem que um monstro assuma o poder sobre vidas que declaradamente não respeita. Não sou ingênua a ponto de achar que um trabalho de arte tem tal potência. Gosto de imaginar os trabalhos como uma espécie de contrafeitiço do capitalismo, do patriarcado, do racismo, que se soma a outros na luta anticolonial.

C&AL:  Como foi o processo de criação do trabalho criado para a Bienal de Berlim?

AB: A cruz do Sul é um trabalho desenvolvido em consequência do crime ambiental em Mariana, no estado de Minas Gerais, quando o rompimento de uma barragem da Samarco (Vale e BHP Billiton) provocou um tsunami de lama de rejeitos de mineração, causando mortes e destruindo ecossistemas desde o estado de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo. À medida que as notícias da morte do Rio Doce e as imagens de animais e pessoas agonizando em um mar de lama chegavam, comecei a pensar em como os riscos da mineração e o processo de destruição ambiental são obliterados do produto final. E também a pensar nesse lugar que ocupamos historicamente junto com outros países do Hemisfério Sul como fonte de recursos naturais a serem explorados e exportados até o esgotamento, para o lucro de poucos e às custas do sofrimento de muita gente.

O trabalho é uma instalação que reproduz a constelação Cruzeiro do Sul a partir de fragmentos de rochas brutas das quais se extraem alguns dos produtos minerais mais exportados pelo Brasil. Para ver as rochas na disposição que vemos a constelação no céu, é preciso se colocar numa posição específica, marcada no chão por uma rosa dos ventos com referências à mineração e posicionada sobre minério de ferro coletado na região de Brumadinho, cidade palco de outro grave crime ambiental. A ponta para o sul é marcada com lama de rejeitos da barragem da Vale que rompeu em Brumadinho, também no estado de Minas Gerais, e que polui o Rio Paraopeba.

C&AL: Qual a importância de estar presente na Bienal em um momento tão singular como este?

AB: Neste momento sombrio da história do Brasil, em que o Ministério da Cultura foi extinto, a produção cultural está sendo sabotada e profissionais do campo da arte despedidos, percebo como extremamente valiosa a oportunidade de participar da Bienal de Berlim com um trabalho que aborda uma questão tão grave como a mineração.

C&AL:  Quais projetos você desenvolve no momento?

AB: Estou desenvolvendo dois projetos: um que gostaria de produzir em São Paulo e outro no Pará. A contaminação do Rio Tapajós por mercúrio devido à mineração ilegal tem consequências graves para as pessoas que dependem do rio para absolutamente tudo, e a falta de acesso à água potável faz com que as pessoas bebam água contaminada por mercúrio e adoeçam. Também estou começando uma primeira pesquisa na Alemanha, ainda em uma fase muito inicial.

C&AL: Você acredita que seja possível falar em uma nova forma de fazer arte após a pandemia? Quais consequências você observa, por exemplo, na condução de projetos desde então?

AB: Me parece precipitado e arrogante querer especular sobre um pós-pandemia, quando sequer consigo entender direito o que estou vivendo neste momento. Uma consequência óbvia e dolorosa é o distanciamento. Mas uma certeza que tenho é a de que “eu não ando só”. Meu trabalho tem relação com uma rede de pessoas que também estão de alguma maneira lidando com o tema e esses encontros e trocas são parte muito importante do processo. Existe um imaginário em torno da prática artística na qual o artista cria sozinho em seu ateliê. A minha prática é o exato oposto. A primeira coisa que faço é encontrar e conversar com outras pessoas. O trabalho começa nessas trocas.

Fábia Prates é uma jornalista brasileira. Atualmente escreve sobre temas relacionados a cultura e comportamento.

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