Entre o oficial e o alternativo

O que houve com a Bienal de Havana?

A tradicional Bienal de Arte de Havana deste ano foi cancelada, causando fortes protestos e discussões na cena cultural cubana. Mas a história não termina aí. Um grupo de artistas decidiu organizar uma Bienal alternativa.

Dannys Montes de Oca, diretora do Centro Wifredo Lam, declarou a implementação cultural das realidades políticas e econômicas do “Terceiro Mundo” como uma das principais contribuições da Bienal de Havana. Esse Terceiro Mundo engloba os países da Ásia, África, América Latina, do Caribe e Oriente Médio, mas também as práticas culturais das minorias marginalizadas nos Estados capitalistas desenvolvidos. Dessa forma, a Bienal de Havana fazia parte do programa político latino-americanista proclamado pela Revolução Cubana – através de outras instituições como Casa das Américas –, e a partir dessa perspectiva contribuía para gerar uma consciência continental, política e econômica terceiro-mundista em contraposição aos esquemas do capitalismo internacional.

A Bienal – que desde 1994 se converteu em um evento trienal – constitui-se no evento mais significativo das artes visuais cubanas. Seu programa de exposições e encontros de curadores e artistas convidados gera uma atmosfera de intercâmbio e enriquecimento que contribui para a atualização dos discursos teóricos e para a cena criativa de Cuba. Durante a celebração da Bienal, os artistas selecionados atuam nas praças, ruas e edifícios destruídos para gerar projetos de interação com os habitantes e visitantes de Havana. Nas edições mais recentes da Bienal destacaram-se as exposições colaterais Detrás del Muro (Atrás do Muro) e Zona Franca (Zona Franca), que convertem tanto o calçadão de Havana como o Complexo Morro-Cabana em incríveis cenários artísticos de participação coletiva. Nesse sentido, a 13a Bienal de Havana de 2018, que agora foi adiada para abril-maio de 2019, continua interessada em examinar a criação como acontecimento vivo ou experiência em curso, a partir do título sugestivo “A construção do possível”.

O cancelamento da Bienal de 2018 devido aos efeitos do furacão Irma (setembro de 2017) sobre as instituições e infraestrutura culturais cubanas parece colocar em evidência o agravamento das tensões políticas e o cansaço da estrutura organizadora cultural da ilha. Sabemos que Cuba não se acostuma com a simultaneidade de grandes eventos: do Festival do Livro ao Festival de Teatro, Festival de Balé ou Festival de Cinema; os acontecimentos se estabelecem com uma sucessão temporal que impede sua coexistência. A centralização do sistema administrativo cubano favorece uma estrutura vertical de vigilância e controle que garante a ordem ideológica durante o único “megaevento” desenvolvido em um espaço e tempo específico.

Desse modo, não era conveniente que a 13a Bienal de Havana coincidisse com a transferência de mandatos estabelecida pela primeira vez em quase 60 anos fora da família oficial (os Castro). No marco da nomeação de um novo presidente, o governo não podia permitir-se um novo Susurro de Tatlin. Recordemos: em dezembro de 2014, a famosa artivista cubana Tania Bruguera foi presa em seu domicílio em Havana depois de reinterpretar, na Praça da Revolução, a performance Susurro de Tatlin, apresentada na Bienal de Havana de 2009. A ação consiste no estabelecimento de um pódio onde o público é convidado a expressar-se livremente durante um minuto. A prisão desencadeou um processo de prisões e repressão à sociedade civil cubana e uma onda de protestos da comunidade artística internacional. (A respeito, ver por exemplo: “La Bienal de La Habana: ¿participar o boicotear?”, debate publicado na página de internet da Colección Cisneros.

A decisão oficial de adiar a Bienal de 2018 produziu reações consideráveis no cenário artístico cubano. Nas palavras dos organizadores de um novo evento alternativo, a #00Bienal, o artista Luis Manuel Otero e a historiadora da arte Yanelys Núñez, a #00Bienal nasce “no momento em que as autoridades culturais cubanas tornam pública a suspensão da Bienal oficial, que já ocorre há 30 anos. A notícia circulou nas redes sociais, onde também se gerou um grande debate”. Várias perguntas vieram à tona, como por exemplo: por que não contaram com os artistas para tomar tal decisão? Até quando o Estado cubano continuará operando autoritariamente sobre o futuro imediato de seus cidadãos? “Das muitas propostas que apareceram”, explicam Otero e Núñez, “uma foi a de fazer a bienal de forma independente do Estado, e nós demos o passo à frente para comandá-la”.

Luis Manuel Otero e Yanelys Núñez também são autores de outros projetos artísticos notáveis por sua dimensão político-ativista: o Museo de la Disidencia en Cuba (Museu da Discidência em Cuba) e o Museo de Arte Políticamente Incómodo (Museu de Arte Politicamente Incômoda). Nessa ocasião, a #00Bienal, que ocorrerá entre 5 e 15 de maio de 2018, surge, de acordo com os organizadores, com a intenção de “apoiar o desenvolvimento da cultura cubana em momentos em que o país experimenta uma forte crise de fé, aumenta a banalidade e a desesperança”. A #00Bienal quer assumir como plataforma de organização diversos espaços independentes (estúdios e casas de artistas, organizações alternativas e iniciativas culturais) cuja prática possa estabelecer um diálogo com os conceitos do popular e seu imaginário. Assim, mais do que propiciar a inserção do artista nas instituições oficiais, a #00Bienal tem agora o desafio de legitimar as práticas criativas locais em um contexto de visibilidade internacional.

 

Aldeide Delgado é historiadora e curadora independente. Foi premiada com a Bolsa de Pesquisa e Produção de Texto Crítico 2017, expedida por Teor/ética. Seus interesses incluem gênero, identidade racial, fotografia e abstração nas artes visuais. Foi relatora no California Institute of Arts, Centro Cultural Espanhol Miami, Universidade de Havana, Casa das Américas, Biblioteca Nacional de Cuba e 12a Bienal de Havana. Estudou História da Arte na Universidade de Havana (2011-2016). Seus artigos foram publicados em Art OnCuba, Cuban Art News, Arte Al Límite e Artishock. É colaboradora de Artishock em Miami.

Traduzido do espanhol por Nathália Dothling Reis.

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