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“Afro” e “cubano”: uma nação possível?

Os cubanos negros veem-se – e são vistos – como afro-cubanos? Como os artistas da ilha lidam com essa questão? Um percurso pela história inacabada da relação entre as artes visuais e a identidade afro em Cuba.

Desde os anos 1920 e 1930 existem, na vanguarda artística cubana, figuras como Wifredo Lam (1902-1982). Sua obra percorre diversas correntes estéticas, como o primitivismo, o surrealismo e o cubismo. Apesar disso, elas contêm um elemento recorrente: o tratamento de lendas e mitos afro-cubanos, em que a representação dos orixás serve como manifestação contundente de poesia e crítica social. Um exemplo que ilustra isso é a obra La Jungla (1943), que compõe hoje o acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.

Osvaldo Sánchez, em seu texto “Sincretismo, pós-modernismo e cultura da resistência”, afirma que “a importância do mítico, do cosmogônico e do ritual na arte cubana dos anos 1980 pode ser decorrente de uma urgência por instaurar arquétipos espirituais e por possuir modelos de maior coerência entre o ethos e o etnos da vida social”. É justamente de acordo com essa ideia que um artista como José Bedia (nascido em 1959) desenvolve sua obra. Bedia é um dos protagonistas do que se chamou de Movimento da Nova Arte Cubana, um ponto de virada nas artes visuais cubanas durante os anos 1980 e sobretudo uma nova forma de assumir a arte e seu papel social dentro da Ilha.

A obra de Bedia é influenciada por sua própria prática religiosa: o artista é um iniciado na Regra de Palo Monte, que ao lado da Regra de Ochá ou Santería e da Sociedade Secreta Abakuá, exclusiva para homens, forma os três cultos de origem africana mais populares no Caribe. Assim, danças e canções provenientes dos rituais dos paleros [praticantes do Palo] são motivos recorrentes no trabalho de Bedia. Mas sua obra, como se observa em sua produção mais recente, estende-se também para outras espiritualidades, como as das culturas centro-americanas.

Em 2010, Alejandro de la Fuente e Elio Rodríguez Valdés reuniram, sob o nome de Quelóides, um grupo de 12 artistas visuais cubanos, cujas obras analisam a questão racial, as religiosidades de matriz africana, bem como o legado histórico dos povos escravizados. A exposição coletiva foi precedida por três exposições realizadas em Havana no fim dos anos 1990:  Quelóides (1997, Casa da África), Nem músicos nem desportistas (1999, Centro Provincial de Artes Plásticas e Desenho) e Quelóides II (1999, CDAV). Essas mostras trouxeram pela primeira vez um enfoque na discussão sobre a problemática racial nas artes visuais cubanas.

Ali, artistas de várias gerações dissecaram a realidade cubana. Entre eles está Belkis Ayón, que em sua breve vida (1967-1999) criou uma obra imprescindível quando se fala de artes visuais em Cuba. Parte da criação da artista gira em torno da princesa Sikán, personagem de uma lenda Abakuá que narra a história da violação de um segredo por parte de uma mulher. Essa personagem e seu conhecimento do mundo Abakuá servem a Ayón como veículo para questionar a realidade. A artista está mais interessada em confrontar seu cotidiano a partir desse imaginário do que em achar que suas obras possam ser documentos verídicos desse universo. Ela revisita mitos e lendas de origem africana e questiona a divisão entre “alta” e “baixa” cultura – tudo isso em momentos nos quais são repensadas no país novas formas de fazer arte.

Outro participante do grupo Quelóides foi Juan Roberto Diago (nascido en 1971). A matéria-prima de sua obra é o cotidiano. O artista aproveita-se de materiais que o dia a dia lhe oferece, conferindo-lhes uma carga simbólica que faz dessa ação um ato de resistência cultural. Seu trabalho engloba desde a instalação até o grafite, tendo como cerne o negro e seu universo, gente de bairro, personagens à margem. Diago questiona o lugar onde se encontra o legado histórico africano na sociedade cubana e como este é percebido pela sociedade.

Em meio a esse processo não concluído, chegou a Havana a mostra Sem máscaras: arte afro-cubana contemporânea, com obras de 40 artistas nos mais diversos formatos, conversas e conferências. Sem máscaras, assim como o projeto Quelóides, evidencia a persistência do racismo e da discriminação racial em Cuba. Na Cuba de hoje, aquele racismo ressurge em forma de “quelóides”, cicatrizes na pele que aparecem em consequência de lesões ou feridas traumáticas. Quelóides com os quais esses artistas nos confrontam, com o propósito de contribuir para o processo de reinvenção da nação: onde o prefixo “afro” não exclua o ser “cubano, onde o pluralismo e a multiplicidade de identidades coexistam em equilíbrio.

 

Yasser Socarrás é cineasta e pesquisador. Estudou no Instituto Superior de Arte (ISA) de Cuba, é mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, e integra o Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas (NUER) da mesma Universidade.

Traduzido do espanhol por Soraia Vilela

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