Manifestações afro-brasileiras

Um reconhecimento urgente

O artista e ensaísta brasileiro Beto Shwafaty visita uma exposição sobre artistas negros de seu país e especula por que a cultura e a sociedade negra brasileira em geral ainda permanecem marginalizadas.

Essas representações visuais funcionaram como contraposições às políticas de embranquecimento da jovem República brasileira, cujo governo regulava (1) a entrada de imigrantes no país. Tais políticas baseavam-se nas tendências intelectuais preocupadas unicamente com o valor passageiro dos escravos e mestiços na adaptação de europeus ao novo clima, permitindo a conquista definitiva do novo mundo. Por outro lado, essas obras de arte também confrontaram as narrativas em que um sistema artístico ainda acadêmico retratava os negros brasileiros como problemas sociais e artísticos: seria possível sequer representar como ideal um trabalhador que fora escravo no passado?

Ainda que abrigassem uma intenção progressista, essas representações modernas baseadas em cânones ocidentais não reivindicaram quaisquer influências africanas ou signos que eram inerentes à arte europeia moderna, nem se mostraram porosas o suficiente para reconhecer a presença dos próprios negros brasileiros como novos atores ou sujeitos. Esse fracasso duplo sustentou, mesmo que indiretamente, a ideia do “negro bárbaro” como uma verdade parcial positivista baseada em valores rígidos que subestimava o valor de uma cosmologia e de uma visão de mundo diferentes. As representações dos negros brasileiros libertos criaram uma nova imagem idealizada que, apesar de ser progressista, não facilitou a emancipação desses sujeitos e de seus inerentes valores culturais da prisão do colonialismo.

Tudo isso está vinculado ao fato de que ofícios ou trabalho manual e em pequena escala eram comumente associados ao sujeito negro no Brasil. Assumia-se o conhecimento “ocidental” como um “capital branco” a ser transferido para a população escravizada, educando-a nas mais variadas tarefas. A imagem do negro brasileiro sempre serviu para assentar discursos de cordialidade, servilidade e coexistência. Não é por acaso que a visibilidade e inclusão social das populações negras brasileiras sempre foi vista como problemática, uma atitude que pode ser diretamente atribuída ao preconceito e ao racismo. A sociedade como um todo ainda mantém uma ignorância programática em relação ao real papel das raízes negras como elementos fundadores da própria sociedade, uma situação que sempre impediu a emancipação cultural e o empoderamento social necessário para que essas culturas sejam reconhecidas e representadas na sua integralidade.

Tais percepções ainda se fazem presente na cena cultural e não são diferentes do que se vê no campo das artes visuais. Ainda hoje raramente vemos artistas negros brasileiros ou até mesmo espectadores na maioria dos eventos de arte, pelo menos não nas grandes cidades. Em público vemos apenas negros como funcionários, trabalhadores de fábrica, seguranças, garçons, babás e secretárias. Esse estado de coisas é um importante ponto para iniciar uma aproximação com as produções institucionais que tentam tratar desse campo complexo. Irei pontuar brevemente alguns exemplos, tais como a exposição Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca.

Territórios reuniu apenas os trabalhos que integram a coleção pública da Pinacoteca do Estado de São Paulo para traçar um panorama da importância da produção de artistas negros na história da arte brasileira. Uma noção de território foi definida como eixo curatorial que dividiu a exposição, gerando “matrizes” (ocidental, contemporânea, africana) com a intenção de articular esses assuntos e os discursos de cada grupo das obras. Essa abordagem foi limitada tanto pela reunião geral das obras da coleção quanto pelo seu caráter exclusivo, e deixou de fora assuntos socioculturais complexos. Pudemos ver nessa tentativa organizacional um esforço para estabelecer conexões, confrontos e diálogos entre as obras específicas em exibição.

Obviamente grandes artistas foram incluídos na mostra. Todavia o discurso público e a reflexão conceitual não atingiu a mesma qualidade de algumas peças apresentadas. O principal problema parece ser a própria premissa do projeto: uma dificuldade gerada pela aposta de que o reconhecimento de uma descendência africana como um background étnico seria suficiente para gerar uma poderosa hipótese curatorial e unir discursivamente os trabalhos e os temas que os circundam, tudo isso sem considerar que esse caráter comum deriva, na verdade, de um conflito sociocultural, uma condição permanente que é definida historicamente pelos regimes políticos de não-coexistência, invisibilidade e privação de espaços.

Uma instituição com o protagonismo da Pinacoteca teria condições de, com relativa facilidade, arquitetar empréstimos, empregar estratégias de mobilização dos arquivos e confiar nas articulações de documentos para ampliar o campo de discussão. Incluir artistas e discursos não provenientes de uma matriz de descendência africana tão nítida e ao mesmo tempo tocar em outras facetas de assuntos-chave poderia ter agregado as questões e fricções necessárias para estabelecer contrapontos e narrativas que desviassem daquelas oficiais que pareciam, no final, pautar a mostra. Essa exibição reforçou um rijo sistema cronológico, formal e linear no qual não apenas as obras, mas também os próprios sujeitos – os artistas – pareciam se tornar, novamente, representações.

Mesmo que a questão da identidade seja chave, ela não sintetiza as discussões dos aspectos que compõem a complexa questão negra no campo da cultura. Tópicos como espaços de coexistência, assim como classe e direitos, permanecem quase em silêncio no país, pois tropeçam na própria ideia de identidade nacional e nos regimes de visibilidade, inclusão e função social. Essa ignorância em geral reforça as situações violentas nas quais as populações negras no Brasil estão imersas.

Dessa forma, é imperativo reconhecer as práticas religiosas, culturais e populares do universo negro como fatores-chaves na formação da sociedade brasileira e de seus atuais desenvolvimentos socioculturais. Inúmeros artistas negros brasileiros responderam a essas conexões inerentes. Contudo a questão permanece: onde a cultura afro-brasileira e seus atores se encaixam? Quem está autorizado a falar, e como, sobre sua importância e valor no atual estado de coisas? Como eles podem se articular e transitar em tal campo sem incorrer nos vários tipos de violência que, consciente ou inconscientemente, são repetidos e perpetuados? A violência contra a cultura afro-brasileira está longe de ser uma coisa do passado. Ainda assistimos incontáveis casos de ataques e investidas contras as comunidades negras brasileiras hoje.

É imperioso derrubar os entendimentos e padrões sociais que empurram as manifestações afro-brasileiras para as margens das narrativas oficiais, especialmente quando o assunto é a escrita da história. Necessitamos, dessa forma, nos perguntar quais ações culturais e curatoriais podem contribuir para que se compreenda a posição fundamental da população afrodescendente na sociedade brasileira. Se tais ações não conseguirem escapar das recorrentes lógicas de preconceito irão, no máximo, reafirmar uma longa história de controle e separação, que parece operar hoje através de uma aparente integração.

 

(1) O decreto 528, de 28 de junho de 1890, abriu o país para a imigração europeia e estipulou que negros e asiáticos apenas poderiam entrar no Brasil com a autorização do Congresso.

Beto Shwafaty é artista e pesquisador baseado no Brasil. Está envolvido com práticas coletivas, curatoriais e espaciais desde o começo dos anos 2000, e, como consequência, desenvolve uma prática de pesquisa sobre espaços, histórias e visualidades, conectando, formal e conceitualmente, temas políticos, sociais e culturais convergentes no campo da arte.

Traduzido do inglês por Heitor Augusto.

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