África-Brasil

Artistas em trânsito nos anos 1960-1970

Os ideais da ditadura militar que se perpetuou por mais de 20 anos no Brasil passavam pela promoção da arte através da diplomacia. Mesmo ao construir pontes com países africanos, era evidente a estratégia política de reforço de uma suposta democracia racial no país.

Segundo Moura, esse período de estadia não foi constante, mas de idas e vindas, e se deu por intermédio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil em cooperação bilateral com o governo senegalês, sendo que o Brasil forneceu os equipamentos e materiais e o governo senegalês a acomodação de Rossini durante suas estadias.

Novo formato para pensar e fazer arte

A Escola Nacional de Artes de Dacar, fundada em 1960, foi parte da política de Léopold Sédar Senghor, primeiro presidente do Senegal. Incentivado pela cooperação e pelo fortalecimento dos intercâmbios entre os territórios africanos e diaspóricos, a primeira escola de arte do país não desejava a simples reprodução do modelo europeu de arte e educação, mas a criação de novo formato para pensar e fazer arte, sendo a presença de estrangeiros parte desse projeto de aprender para redefinir. A proposta de escola de Senghor foi duramente criticada por artistas da geração seguinte, que a viam como uma espécie de pedagogia colonial.

A formação das primeiras escolas de artes na África expressava a disputa pela narrativa e despertava no mundo a inquietação sobre os impactos que promoveriam. A partir disso, não podemos deixar de notar que esses estrangeiros tinham suas racialidades e origens étnicas geralmente marcadas pela branquitude e pela europeidade – um jogo que reforçou, na maioria dos casos, os discursos ocidentais das artes. E, possivelmente, a presença de Rossini Perez, um artista euro-brasileiro marcado pela branquitude, também tenha sido atravessada por tal tensão. Segundo Sabrina Moura, a presença de Rossini era lida a partir do registro de um artista branco e francófoco, visto que ele havia passado uma temporada na França, mas se destacando do ensino colonial promovido pelos coopérants franceses, que estereotipava a produção artística africana. De acordo com a curadora, Rossini ressaltava a horizontalidade e a cooperação entre alunos e professor, uma postura que o diferenciava.

Diplomacia através das artes

Segundo a pesquisadora Gabrielle Nascimento Batista, que vem estudando a diplomacia brasileira com a África através das artes no caso das relações intermediadas pelo governo brasileiro nesse período, havia dois pontos em disputa: um no campo internacional e outro no nacional. Enquanto a África surgia como território recente de mercado e circulação das artes na via ocidental, no território brasileiro, além da busca por integrar a agenda internacional, também eram discutidos os aspectos de uma dita arte afro-brasileira. E, em certa medida, as ações da diplomacia do período foram marcadas por uma estratégia política de controle e reforço da suposta democracia racial no país.

Batista pontua que o intercâmbio acadêmico não foi a única via de diplomacia das artes, podendo-se acrescentar aí também exposições, empréstimos de acervo, colecionismo e outras. Em sua dissertação O que dizer sobre a política africana do Brasil e as artes? Reflexões sobre a Coleção Africana do Museu Nacional de Belas Artes (1961-1964), a autora investiga a implantação da embaixada brasileira em Acra, capital de Gana, para a qual foi encaminhado o jornalista Raymundo Souza Dantas como embaixador, o único diplomata negro do período e o primeiro do Brasil republicano, sendo a sua presença intermediadora no processo de organização do acervo de origem africana do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

O fato de Dantas ter sido o único diplomata negro já explicitava que não havia democracia racial no país, e que, do mesmo modo que a branquitude marcava os corpos que integravam a política internacional brasileira, também definia as escolhas realizadas por eles. A seleção de quem representaria o Brasil no exterior também passava por esse filtro, e isso fica explícito na formação da comitiva brasileira para os dois primeiros Festivais Mundiais de Arte Negra, em 1966, na cidade de Dacar, e em 1977, na cidade de Lagos, capital da Nigéria.

Pessoas brancas como mediadoras das artes afro-brasileiras

O 1° Festival Mundial das Artes Negras, também parte da política de governo de Léopold Sédar Senghor e dos seus ideais do Movimento Negritude, com o objetivo de reunir agentes de diversos países através das artes e culturas africanas e afro-diaspóricas, teve o Brasil como o único país da América do Sul, e para o qual o país enviou uma delegação com Rubem Valentim, Heitor dos Prazeres, Vicente Pastinha, entre outros. Como é possível notar, o grupo era formado por artistas negros e brancos que, provavelmente pelo ponto de vista do governo brasileiro, auxiliavam na construção da imagem de uma nação de democracia racial.

Segundo o teatrólogo e artista Abdias Nascimento, na conhecida Carta a Dacar, publicada em 1966, tal comissão foi definida sem consulta prévia à classe artística afro-brasileira e excluiu alguns artistas cujo teor político das ações estivessem ligados ao enfrentamento das desigualdades sociais e raciais, como era o caso do Teatro Experimental do Negro (TEN), do qual Nascimento era coordenador. Se faz importante lembrar que a crítica realizada por Abdias não recai sobre os artistas, mas sobre a curadoria do Ministério, que reafirmou a posição de pessoas brancas como mediadoras das artes afro-brasileiras, além de reforçar um discurso político contraditório aos dos movimentos negros.

A carta pública de Nascimento denunciou que, apesar da crescente relação diplomática entre Brasil e os países africanos no período, do lado brasileiro não foram os discursos dos Movimentos Negros que as coordenaram. Além das supressões internacionais, o TEN sofria com as perseguições ideológicas e políticas internas, tendo encerrado suas atividades em 1968, quando Abdias Nascimento partiu para o exílio.

Laços com territórios afro-diaspóricos

No exterior, uma das atividades desenvolvidas pelo teatrólogo foi a docência na Universidade de Lagos, capital da Nigéria, contribuindo para o ensino das Artes Cênicas e Visuais e onde pôde, sem intermédio da diplomacia brasileira, presenciar, em 1977, o 2° Festival Mundial de Artes Negras. Intitulado Festival Mundial de Arte e Cultura Negra e Africana, o evento teve a Nigéria como novo país mediador e buscava firmar os laços com os territórios afro-diaspóricos, além de reforçar o apoio aos países africanos que ainda enfrentavam o processo de independência, como era o caso das ex-colônias portuguesas.

Para essa edição, integravam a lista de artistas Emanoel Araújo, Francisco Guarany, Geraldo Telles de Araújo, José de Dome, Maurino de Araújo, Miguel dos Santos, Octávio Araújo, Waldeloir Rego, entre outros. De acordo com o pesquisador Hélio Menezes, na dissertação de mestrado Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira, essa foi “uma delegação que, ao menos em seus termos, corroborava a ideia de um país que teria sofrido influências culturais africanas, mas que tratou de inventar algo próprio, distinto e devidamente desafricanizado”. Comprovando que os ideais da ditadura militar na promoção das artes através da diplomacia eram o de controle do discurso político e racial. Mesmo na construção de pontes com os países africanos, essas intenções ficavam evidentes.

Com essas vinculações, percebemos que o trânsito de artistas brasileiros nos territórios africanos nas décadas de 1960 e 1970 fez parte do projeto de defesa de determinadas narrativas, autorias e corpos. Obviamente, são indiscutíveis as habilidades e contribuições que tais artistas apresentam para as artes e seu ensino, entretanto, não se pode ignorar que suas circulações estiveram permeadas por poderes e interesses questionáveis. Aderir ao revisionismo desse período, levando em consideração tais fatores, é importante para a construção de uma crítica sólida.

 

Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019). É colaboradora de conteúdo da Diáspora Galeria e docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina. 

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