Por mais paradoxal que pareça, esse ano de cortes e desmontes na política cultural brasileira trouxe, apesar de tudo, maior espaço para artistas não brancas e não brancos – seja em novas galerias, retrospectivas de grandes museus ou debates no ambiente acadêmico.
Vista da mostra do acervo da Pinacoteca de São Paulo, 2020. À frente, instalação de Jonathas de Andrade, no fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Divulgação.
Vista da exposição Véxoa, Nós Sabemos, 2020, Pinacoteca de São Paulo. Foto: Levi Fanan.
Encontro do Ciclo internacional de webinários: Artes africanas - histórias, perspectivas e fluxos: Bienais 1 - representações africanas na Bienal de São Paulo; diáspora na Bienal de Dacar - com Luciara Ribeiro, Sabrina Moura e mediação de Kleber Amâncio). Imagem: Divulgação.
No Brasil, o ano de 2020, além de conturbado e desafiador, apresentou um quadro de destruição de instituições públicas e redução de investimentos estatais em todo o setor cultural. Apesar disso, a cena negra nas artes parece estar melhor acomodada se comparada aos últimos cinco anos. Especialmente para os artistas visuais negros, a dissolução do Ministério da Cultura trouxe o vandalismo contra a Fundação Cultural Palmares que, coordenada por um presidente negro, tem atacado personalidades negras importantes, fazendo ruir anos de estruturação da instituição.
Paralelamente a esse desmonte, contudo, foi inaugurado na cidade de São Paulo um monumento em homenagem ao arquiteto negro Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira, 1721-1811) feito pelo artista Lumumba e pela arquiteta Francine Moura. Simultaneamente, a Pinacoteca do Estado, que vem demonstrando interesse por artistas não brancos, aumentou a presença dos mesmos na exposição de longa duração de seu acervo, exibindo o trabalho de 26 nomes, entre os quais Sidney Amaral (1973-2017), Maxwel Alexandre, Flávio Cerqueira e Jaime Lauriano. É importante sinalizar que a instituição mostra-se também sensível a obras de artistas indígenas contemporâneos como Jaider Esbell e Denilson Baniwa, além de ter inaugurado a mostra Vexoá: nós sabemos, com curadoria de Naine Terena.
Espaços fora do eixo Rio-São Paulo
Outra instituição pública, o Centro Cultural São Paulo, celebra a 30ª edição do “Programa de Exposições” que vem fomentando a produção artística de artistas negras e negros nos últimos anos. Em 2020, uma das mostras selecionou nomes que ultrapassam o eixo Rio-São Paulo, apontando para a diversidade étnico-racial e de gênero e indicando mudanças radicais na sensibilidade em torno das novas identidades presentes na cena da arte contemporânea no país.
Não se pode esquecer, contudo, que profissionais negros de museus e instituições culturais foram duramente atingidos pelo fechamento de espaços e pela crise do setor. Em São Paulo especificamente, funcionárias e funcionários do Museu Afrobrasil e do Instituto Tomie Ohtake estiveram entre os mais prejudicados. O fechamento da Rede Sesc São Paulo, que nos últimos anos vinha desenvolvendo um trabalho assertivo sobre racismo, atingiu especialmente profissionais de mediação cultural e montagem de exposições.
Projeto Performance na Rede. Rubiane Maia, Transfiguração. Performance. Fotografia digital sobre Lightbox. The Warren, Folkestone, Reino Unido, 2018. Trabalho realizado em colaboração com Manuel Vason. Cortesia da artista.
Após o início da pandemia, programações educativas e culturais foram surgindo na internet – ora espontâneas, ora motivadas por chamadas privadas e públicas.
Espaço das redes sociais
Após o início da pandemia, programações educativas e culturais foram surgindo na internet – ora espontâneas, ora motivadas por chamadas privadas e públicas. São debates, cursos, oficinas e palestras oferecidos por indivíduos, coletivos, universidades públicas, museus e instituições culturais, gratuitos ou pagos. Ao mesmo tempo, redes sociais como o Instagram, que já funcionava como uma vitrine para exibição de trabalhos de artes visuais, passou também a sediar encontros transmitidos de todas as partes do país.
Entre os mais interessantes, embora não exclusivamente racializados, foram os ciclos de conversas Performance na Rede, que reuniram performers e estudiosos de todas as regiões do Brasil. Os encontros fazem parte das ações da Embaixada da Performance (EPA), projeto criado por Maíra Vaz Valente e Raphael Couto ao lado de outra ação da mesma organização, o Perforcâmbio. Atualmente a EPA participa de uma ação que envolve performers de toda a América Latina, feito inédito, segundo Maíra Vaz Valente.
Espaços acadêmicos
Entre os vários eventos acadêmicos, merece destaque o “Ciclo internacional de webinários – Artes africanas: histórias perspectivas e fluxos”, que se estende até dezembro de 2020, organizado pelo grupo de pesquisa e extensão Áfricas nas Artes (“História(s) e narrativa(s) das artes do sul em perspectivas transculturais – circularidades, fluxos e ressignificações”) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e transmitido pelo canal do grupo. A Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição, que reúne instituições e núcleos de pesquisa em torno do debate racial, realiza até fevereiro de 2021 o webinário mensal “Curadorias: histórias e práticas entre diversidades”. O evento abriu com Alex Tso, fundador da Galeria Diáspora, e no mês de novembro os convidados foram os curadores angolanos Luamba Muinga e Marcos Jinguba.
Criado um mês após o inicio da pandemia no Brasil, o canal Pensarafricanamente já possui 10 mil inscritos e tem apresentado uma programação diversa de temas como políticas públicas, empreendedorismo, gênero, artes e cultura e religiosidades, entre muitos outros. O encontro dedicado ao célebre escritor, artista visual e sacerdote do candomblé Mestre Didi (1917-2013), contou com a participação do artista Ayrson Heráclito, do pensador Muniz Sodré, da cantora, bailarina e professora Inaycira Falcão e do filósofo Marco Aurélio Luz.
Espaço do mercado
Há de se notar também que a SP-Arte, considerada a principal feira latino-americana de arte, há poucos anos sequer sabia que existiam artistas e poéticas racializadas, indígenas ou trans. Neste ano de 2020, a 17ª edição (virtual) da Feira apresentou 136 expositores e organizou debates e palestras sobre violência, vandalismo ecológico e a situação das mulheres e dos negros no Brasil.
Entre as novidades desta edição da Feira estão a Galeria HOA, o coletivo Levante Nacional Trovoa e a 01.01 Platform. O Levante Nacional Trovoa é um coletivo de artistas visuais e curadoras racializadas fundado em 2017, enquanto a 01.01 Art Platform é uma iniciativa que reúne um grupo significativo de artistas. Criada em 2018 com o apoio de instituições de Gana, Portugal e Reino Unido, a 01.01 Art Platform tem como objetivo promover um circuito de intercâmbio cultural que envolva o fomento e o consumo da arte de forma consciente, justa e engajada.
Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico, curador independente e educador.