A artista colombiana Carmenza Banguera aborda em suas obras – muitas vezes com um grande senso de humor – os paradoxos da autorrepresentação de uma mulher negra em um país racista. Para a Contemporary And América Latina, Nicolás Vizcaíno Sánchez conversou com ela sobre sua visão da arte, particularmente sobre a representação de uma atitude antropofágica perturbadora nas representações dos corpos negros.
Carmenza Banguera, Etnimercantilismo no. 1, 2015. Vista da exposição Manglaria: Raíces y Sujeciones, Casa Obeso Mejía, Museu La Tertulia, Cali, Colômbia, 2019. Cortesia da artista e do Museu La Tertulia.
C&AL: Quais têm sido os seus maiores interesses desde que você decidiu trabalhar com arte?
Carmenza Banguera: As pessoas me reconhecem como uma ativista feminista negra e eu pessoalmente não me reconheço dessa forma. Então surgiram muitas perguntas sobre o porquê de haver esse reconhecimento, especialmente na forma como concebo meu trabalho, porque nele não falo sobre representar o afro como tal etnicamente, embora queira, sim, levantar minhas preocupações sobre o que é ser afro, sobre o que os outros pensam que significa, e sobre as coisas com as quais não concordo. Ser crítica sobre isso é obviamente bastante cansativo, porque o assunto é muito delicado. Sobre isso eu sempre tive uma postura, que é: sou simplesmente uma artista que, por fatores biográficos, tem esses interesses. Quer dizer, perguntas sobre identidade, racismo etc. não são temas infundados, essa é a minha realidade, sou uma mulher negra e minhas perguntas surgem disso, surgem da minha experiência.
C&AL: Essa ideia da experiência me encanta, pois creio que devemos justamente tentar pensar sobre as representações menos em um tom acadêmico e mais a partir da questão de como nos vemos e somos vistos…
CB: Culturalmente, na minha cidade, Cali, muitos se orgulham de sua população afro, mas só quando isso é um recurso necessário ou útil. Por exemplo, você verá em qualquer vídeo promocional da cidade as mulheres que vendem nas ruas pupunha ou manga picada. Mas não há leis que se importem com o bem-estar dessas pessoas! Essas imagens não deveriam ser gratuitas, pois são de mulheres que trabalham, muitas vezes solteiras, chefes de família, que às vezes não têm acesso ao sistema de saúde. Você me entende? Se você, de uma forma ou outra, está se beneficiando com essas imagens, preocupe-se com outros aspectos da vida dessas mulheres. Se é uma coisa importante, cuide dela!
Carmenza Banguera, Etnimercantilismo no. 1, 2015. Cortesia da artista.
C&AL: São justamente reflexões desse tipo que motivam sua peça Etnimercantilismo no. 1. Como você chegou a essa cabeça/máquina?
CB: As pessoas, quando vêm a Cali, ou quando vão a Cartagena, compram como lembrança uma miniatura de uma mulher palenquera [mulher com trajes típicos identitários] ou uma mulher negra, além de comprar um chivita [souvenir na forma de um ônibus colorido] que diz “Colômbia”. A peça Etnimercantilismo nº 1 tem três eixos temáticos. Primeiro há uma preocupação com o que outras gerações levantaram a partir de seu trabalho com açúcar na região do Vale do Cauca [região da Colômbia onde as plantações de cana-de-açúcar abundam]: essa cabeça produz seu próprio cabelo, mas esse cabelo é algodão-doce. Quando a peça está funcionando, com seus motores girando, as pessoas se aproximam com uma vareta e deliberadamente começam a girar e girar para comer o algodão-doce. Então há, em segundo lugar, um comentário sobre o cabelo afro. Esse foi um elemento muito forte de reafirmação, mas sinto que não devemos cair no reducionismo, porque isso leva a uma espécie de canibalismo sobre essas representações culturais, transformando-as em produtos consumíveis. O terceiro elemento é a figura das mulheres que vendem frutas com bandejas na cabeça, o que é visualmente muito impressionante. Para mim, era importante que essa peça fosse a cabeça que produz o cabelo e, ao mesmo tempo, uma espécie de bandeja, e é por isso que a peça tem a cor e a forma que tem. Modelei essa peça em argila com a professora e artista Mercedes Angola em 2015. Foram feitos grandes moldes de gesso com um núcleo metálico, e então a peça foi produzida em resina e fibra de vidro, para posteriormente receber uma espécie de acabamento cromado.
C&AL: Que implicações tem o fato de essa obra ser ativada com a participação do público? Sem dúvida é muito diferente semear teoricamente certas inquietudes e ver a obra em ação.
CB: A peça é uma imagem muito forte. Na exposição Manglaria, depois de um passeio por tantas peças, você chegava a essa, que convidava você a interagir. Pois seu sentido só se completava se houvesse alguém na frente fazendo essa ação de coleta. Aí está o elemento canibal. Fiquei muito impressionada, pois aquele consumo massivo por parte das pessoas era o que eu queria abordar com a peça. A metáfora estava sendo cumprida: as pessoas estavam comendo um afro! Era como quando você joga um pedaço de queijo no chão e os bichinhos se aproximam e o comem. Havia lá uma cabeça que estava sendo saqueada e havia até dez pessoas satisfeitas, comendo seus cabelos. Acredito que, quanto mais você mergulha nessa imagem, mais a caricatura recua e há uma revelação.
Carmenza Banguera, Historias creadas por padres cretinos para explicar el mundo presenta: Hombres de chocolate, 2018. 45º Salão Nacional de Artistas, Bogotá, Colômbia, 2019. Cortesia da artista.
C&AL: Falando em caricaturas, outra obra sua tem como título Historias de padres cretinos para explicar el mundo: Hombres de chocolate. De donde surgiu essa ideia?
CB: Todas as minhas peças são respostas a anedotas. Nesse caso, a caminho do Museu da Tertulia em Cali, havia, sempre em um certo ponto do trajeto, uma menina loira que ficava olhando para mim, a princípio muito assustada, e depois com algum fascínio. Numa dessas vezes a menina gritou: “Mãe, mãe, aí vem a garota de chocolate”. Fiquei com isso. Alguém poderia dizer que foi apenas uma associação, mas eu sabia que havia uma explicação ali e que certamente a mãe daquela menina tinha a ver com o imaginário dela. O que faço é pegar esse imaginário, dar-lhe uma forma, e dizer: Olhem, se isso fosse real, esta seria a estupidez da qual estão falando! Por que é preciso “exotizar” para aceitar a diferença? No meu caso, essa pergunta foi me abrindo para muitas outras questões. Foi aí que comecei a pensar no projeto macro “La culpa no puede cambiar el pasado ni el exotismo resolver el futuro”, cujo primeiro capítulo foi chamado de “La gente de cacao”. É onde apresento esta peça, que é um tríptico de cones de sorvete que se derretem e revelam, nesse processo, uma espécie de crânio. Durante essa exposição havia, além dessa peça, um arquivo audiovisual que eu tinha alimentado ao longo do tempo com a publicidade que usa a negritude para falar sobre chocolate, de forma a inferiorizar e ridicularizar.
Carmenza Banguera, Historias creadas por padres cretinos para explicar el mundo presenta: Hombres de chocolate, 2018. Cortesia da artista.
C&AL: Suas obras revelam a existência de um desejo compulsivo de observar o corpo negro como quem devora um cadáver; revelam uma reação antropofágica à representação do corpo negro. Como você acha que seu trabalho é recebido em uma sociedade racista como a colombiana?
CB: Sempre há uma rejeição à ruptura repentina, não? Às representações onde os negros são protagonistas, não apenas às histórias onde o negro é “parte” de outras histórias. Sempre me perguntaram, por exemplo, como acredito que as minhas obras produzem mudanças, e se minhas obras talvez reforçam certos tipos de imaginários. A resposta é simples: o que faço é apontar. Dizer que pretendo mudar as coisas radicalmente com minhas peças seria uma ilusão. Mas, a partir da assinalação, sim, são impulsionadas coisas que no futuro podem ajudar a gerar outros tipos de consciência. As pessoas estão sempre pensando na produção da arte como um ato de genialidade, como algo que caia bem e agrade a todos. Bem, não, minhas peças têm grandes detratores afro. Em meus trabalhos há um elemento de intriga, de levantar questões, e afinal, isso é o que mais me interessa.
Carmenza Banguera (1991) é artista plástica de Santiago de Cali, Colômbia, egressa do Instituto Departamental de Belas Artes de Cali. Sua pesquisa está marcada por um olhar crítico sobre raça, racismo e os clichês na representação das comunidades afro-colombianas. Sua obra questiona como a cultura e a estética afro se mercantilizaram até o ponto de distorcer suas contribuições culturais. Através de sua obra, principalmente a instalação, Banguera indaga sobre a representação exótica do negro e sobre como a identidade étnico-social transgride a barreira do cultural para tocar aspectos mercantilistas, econômicos e políticos. Expôs nos Emirados Árabes, na Argentina, no Equador e na Colômbia e participou do 45o Salão Nacional de Artistas na Colômbia e da mostra Manglaria: Raíces y sujeciones, no Museu La Tertulia, em Cali (2019).
Nicolás Vizcaíno Sánchez (1991) é, conforme o caso, artista, escritor ou pesquisador. Vive e trabalha na região de montanhas da Colômbia.
Tradução: Cláudio Andrade