Josué Azor deu os primeiros passos na fotografia ao estudar administração, mas foi o terremoto devastador de 2010 que o levou a enveredar por esta prática artística profissionalmente. Nesta entrevista, o artista nos conta um pouco mais sobre o documentar da comunidade queer local enquanto forma de registrar a divergência, a intersecção do Vodu e da vida queer, e sobre as similaridades entre Brasil e Haiti.
Josué Azor, “#GASONSOLID”, 2016. Cortesia Josué Azor.
Josué Azor, “Noctambules”, 2016. Cortesia Josué Azor.
C&AL: Você tem um histórico em administração e finanças. Como desenvolveu sua atividade como fotógrafo?
Josué Azor: Não vamos falar sobre isso (risos). Meus pais queriam que eu virasse médico, mas nunca tive vontade. Para satisfazê-los, sobrevivi aos meus dois anos de formação em Administração em uma escola pública. Insisto em dizer que sobrevivi (risos). Isso foi antes de 2010 e, na época, eu me considerava um orgulhoso turista local. Eu viajava para o interior e gostava de compartilhar nas redes sociais o que via e recebia um feedback muito bom de pessoas amigas e fotógrafas. Isso me encorajou.
Aí veio o terremoto de 2010, que foi um ponto de inflexão para muitos haitianos, incluindo eu próprio. A terra foi sacudida. Ficamos desalojados. Sem teto. Nas ruas. Muitos de nós tiveram que repensar a vida. Muito dinheiro foi enviado ao Haiti, e a maneira como foi administrado foi uma bagunça total. No entanto, isso também trouxe oportunidades, como capacitações educacionais. A atenção internacional recebida pelo Haiti também trouxe muitos fotógrafos. Eu diria que isso criou uma dinâmica nova no campo da fotografia e da videografia. Com a nossa tragédia, viramos a estrela do Caribe por anos. Foi estranho, mas algumas pessoas tiraram daí alguma coisa – para mim, foi a fotografia.
Historicamente, a fotografia haitiana era uma fotografia familiar, comercial ou oficial, e não artística ou documental. Foram principalmente pessoas de fora que nos documentaram, não tínhamos o controle da narrativa. Depois do terremoto, iniciativas como a AfricAmericA foundation tiveram um papel importante na mudança de perspectiva e na promoção da fotografia enquanto arte. Uma oficina da qual participei após o terremoto com o fotógrafo David Damoison, organizada pela FOKAL e pelo Institut Français, mudou a maneira como via a fotografia documental. Passei a considerá-la como arte e meio de se autoexpressar. Esses espaços realmente influenciaram a minha vida, no sentido de como expresso e abraço minha liberdade.
C&AL: Como você se deslocou da fotografia paisagística, no início da sua carreira, para a fotografia documental, que o permite mergulhar nas histórias do povo haitiano?
JA: Através das minhas fotos, você pode ver como fui evoluindo ao longo do tempo. Lembre-se que chamavam o Haiti de “pays maudit” (país maldito). Eu queria realmente conhecer o país por mim mesmo. Da observação de paisagens, passei gradualmente à observação de uma cerimônia vodu pela primeira vez na minha vida. É um grande repositório, e você não precisa ser um vodu para ver e experienciar a beleza. Mas ao menos preste atenção e respeite. É uma maneira de respeitar o seu próprio povo.
Seis dias após minha primeira cerimônia, em 12 de janeiro, houve um terremoto. Quando fui à minha segunda cerimônia vodu, mais tarde naquele ano, trouxe minha câmera e tirei fotos, claro. Devido á minha formação cultural, tive que me acostumar com o vodu. Quando ouvi a música pela primeira vez, achei que estava ouvindo o demônio. Digo isso para salientar que a minha fotografia foi uma maneira de olhar e conhecer a mim mesmo.
Josué Azor, “RASIN (ROOTS)”, 2011. Cortesia Josué Azor.
Você tem a canção. Você tem a energia. Tudo é muito intenso. Rolou uma mágica e você pode ver isso nessa imagem.
C&AL: Acho sua série Racin (Raiz, em crioulo haitiano), sobre rituais haitianos, muito comovente. Especialmente a teatralidade de um retrato sem título, que você realizou em 2011. Como você captou esse momento?
JA: Essa foto foi feita durante uma cerimônia vodu. Eu já era um fotógrafo sem saber disso. A pessoa está em transe, e foi como se eu também estivesse. Você tem a canção. Você tem a energia. Tudo é muito intenso. Rolou uma mágica e você pode ver isso nessa imagem.
Outra coisa é que as pessoas naquele espaço são muito generosas com fotógrafos. Emociona-me pensar no que elas disseram: “Mostre a gente sob uma luz diferente. Mostre como somos belos. Você sabe que temos muita má fama.” Então foi assim que fiz essa foto.
C&AL: Em sua série Clin d’Oeil: Haïti-Brésil (Piscar de olhos: Brasil-Haiti), você explorou aa similaridades entre os povos e paisagens haitianos e brasileiros. Este foi um de seus primeiros projetos enquanto fotógrafo profissional, após o terremoto de 2010. Como surgiu esse projeto e qual foi sua importância para você?
JA: Tive a oportunidade de ir a Brasília, São Paulo e Porto Alegre. Fiz fotos e comecei a notar algumas similaridades. Meus olhos sempre foram atraídos por pessoas negras e minha mente ficou fazendo comparações em diferentes níveis. Por exemplo, fomos a uma empresa agrícola. Seu orçamento anual era maior do que o orçamento do Haiti inteiro.
A partir daí, recebi a proposta de fazer uma exposição para o Culturel Brésil-Haïti, em Port au Prince. Minha percepção da fotografia evoluiu desde então. Foi uma oportunidade incrível para um jovem fotógrafo, mas eu não faria isso novamente. É como atirar na água uma pessoa que não sabe nadar.
C&AL: Sua série Noctambules (Noctâmbulos) trata da vida noturna queer e gay, especialmente, em Port-au-Prince. Por que foi importante para você explorar esta parte da sociedade da cidade?
JA: Quando saio, não vou a festas necessariamente. Foco na vida noturna queer e em todos os tipos de cena underground, embora seja difícil de encontrar cenas hoje em dia, pois o acesso pode ser complicado. Percebo a vida noturna nas ruas do Haiti como sendo dominada por homens. Focar nisso é, portanto, outra maneira de falar sobre todos os tipos de masculinidade. Os caras passam de durões e musculosos na rua, durante o dia, a totalmente suaves, abertos e calmos em relação à vida, à noite. A vida noturna é um espaço especial. O som é diferente. A maneira como você escuta é diferente. Às vezes me sinto mais confortável à noite, por motivos de segurança, por exemplo.
Meu interesse pela vida noturna, especialmente pela vida noturna queer, está ligado com a minha própria vida. Cresci em uma família em que era impossível sair à noite. Para ilustrar como eu vivia frustrado: adivinhe quem me acompanhou ao meu próprio baile de formatura? Minha tia. Queria descobrir por mim mesmo como era “sair à noite”. Não há mais filosofia. É tão simples e fundamental quanto isso.
Comecei explorando a vida noturna queer por mim mesmo com uma câmera em uma época em que a investigação desta parte da sociedade não existia a partir de uma perspectiva haitiana. As pessoas nas ruas me falavam de festas queer majoritariamente gays, e foi assim que fiquei sabendo desses espaços. Foi logo após o terremoto, portanto em um momento em que a maioria de nós estava muito desconfiada em relação à fotografia. Havíamos visto o poder da fotografia e como era utilizado online. Então trabalhei com isso. Tinha que conquistar confiança em um espaço ao qual eu acabara de ser apresentado, e realmente pensei como fazê-lo. Eu não mostrava rostos na maioria das vezes, por exemplo. Mas as coisas estão mudando. A homofobia existe, mas também há mais aceitação.Hoje em dia, quando estou em uma festa, as pessoas vêm a mim e me pedem para tirar fotos delas. Isso significa muito. E: o vodu também pode ser ligado a espaços queer.
Josué Azor, “Erotes”, XXXX. Cortesia Josué Azor.
C&AL: Você está planejando expandir sua série sobre vodu para incluir a vida queer em um lakou (um sistema de vida comunitária) fora de Port-au-Prince. Você poderia contar um pouco sobre esses planos?
JA: Muitas vezes parece que não somos a República do Haiti, mas a República de Port-au-Prince. Mas o fato é que existem realidades fora da capital, e quero investigá-las. Frequentemente as pessoas se surpreendem como o queer é expresso de modo diferente em outras cidades. Ficam surpresas ao ver solidariedade, uma dinâmica respeitosa ou uma forma diferente de convivência entre as pessoas. Existem valores que nós da cidade precisamos considerar e aprender com as pessoas do interior.
A série será também uma maneira de dar a nós, haitianos, uma perspectiva a mais. Se você começar a falar de problemas no Haiti, poderá acabar se matando. Mas há coisas realmente incríveis acontecendo e precisamos valorizá-las. Então, novamente, também quero fazer isso por mim mesmo, para aprender. Além disso, essa forma de investigação também pode ser uma oportunidade de empoderar outros haitianos a utilizar a fotografia.
C&AL: Qual a importância da nudez em sua prática fotográfica?
JA: A nudez feminina sempre esteve ao meu redor. Havia mulheres nuas em telões e em imagens nas ruas. Eu não via nudez masculina e as coisas que eu gostava. Então, tive que criar isso por mim mesmo.
Minha série homoerótica Erotes nasceu de uma brincadeira. Disse: “Já vi o bastante desta nudez, quero descobrir o sexo”. Fiquei dizendo isso, como se fosse impossível, e comecei a me perguntar quem eu poderia arranjar para ser modelo em Porto Príncipe. Quem saberia lidar com as reações adversas? Em última análise, a série é também sobre a reapropriação da nudez. Dou o melhor de mim para retratar a nudez de forma bela, com respeito e suavidade. Isso pode ser divertido. Não precisa ser sério. Isso é a vida.
É também uma questão de registro, porque nunca se sabe. Talvez daqui a 20 anos digam que “a comunidade queer nunca existiu”. É, portanto, uma luta constante. Nunca me considerei uma pessoa militante. Mas meu trabalho tem totalmente essa dimensão.
Marny Garcia Mommertz é escritora e artista. Ela se interessa por formas experimentais de arquivamento e recebe o PACT Zollverein Fellowship. Trabalha como coordenadora editorial na Contemporary And América Latina.
Tradução: Marie Leão