A exposição fotográfica documenta como artistas de gênero diverso incorporaram a personagem histórica La China Morena a fim de participar do movimento LGBTQ+ na Bolívia com uma forma de protesto comemorativa e não-violenta, e como isso lhes permitiu personificar Q’iwa, palavra quíchua que indica uma pessoa que encarna tanto o feminino quanto o masculino.
Rommy Astro no Festival Señor Jesús del Gran Poder, La Paz, Bolivia, 1974. Cortesia David Aruquipa.
Uma nova exposição no espaço Auto Italia, em Londres, conta a história de La China Morena, personagem de uma performance histórica, que proporcionou liberação e liberdade de expressão a comunidades comunidades LGBTQ+ e de gênero diverso na Bolívia.
Barbarella foi uma travesti dançarina de carnaval que ousou beijar o presidente da Bolívia em 1974, mudando o curso da história para a comunidade queer na região andina. Barbarella’s Kiss (O beijo de Barbarella) é também o título da mais recente exposição de artista, arquivista e ativista David Aruquipa Pérez, da Bolívia, em cartaz até o dia 11 de junho de 2023, no espaço de arte londrino Auto Italia.
A exposição apresenta uma seleção de fotografias vernaculares extraordinárias dos anos 1960 e 1970, do Arquivo Q’iwa. Sob os cuidados de Aruquipa Pérez, este arquivo é um acervo de impressões, vestidos, cartas e outros artigos que pertenceram (e ainda pertencem) a travestis que executam danças populares na Bolívia, ítens que ajudam a definir e dar visibilidade a suas identidades.
Lucha (Luis Vela) em um festival rural, La Paz, Bolivia, c. 1973. Cortesia David Aruquipa.
Barbarella foi uma travesti dançarina de carnaval que ousou beijar o presidente da Bolívia em 1974, mudando o curso da história para a comunidade queer na região andina.
As fotografias expostas narram o impacto sócio-político e cultural de La China Morena, personagem representada nas performances da dança Morenada, parte dos tradicionais carnavais de rua de santas e santos padroeiros da Bolívia. Essas performances acontecem desde os tempos coloniais e foram inspiradas pelo comércio de pessoas escravizadas na América do Sul. Na Bolívia, La China Morena era uma personagem feminina paqueradora que dançava sensualmente para as pessoas escravizadas que trabalhavam, incitando-as a trabalhar mais duro. Historicamente, La China Morena era interpretada por homens, mas, desde os anos 1960, a natureza de gênero fluido e ambiguidade vem sendo vista por travestis como uma oportunidade de trazer visibilidade à luta queer na região andina por meio de performances radicais. Ela também é vista como uma maneira de permitir a personificação de Q’iwa, palavra quíchua que indica uma pessoa que incorpora igualmente o feminino e o masculino, também conhecida como Dois Espíritos. A partir daí, a performance se tornou um domínio exclusivo de travestis e La China Morena se transformou em um símbolo de liberação para pessoas homossexuais e de gênero diverso, destacando o papel das comunidades LGBTQ+ nos populares carnavais de rua.
O título da exposição faz alusão ao beijo que a dançarina Barbarella deu em Hugo Banzer Suárez, ditador militar da Bolívia de 1971 a 1978, quando ele assistia às festividades de el Gran Poder, em La Paz, em 1974. O evento aparentemente sem importância foi visto como um gesto que pretendia trazer má sorte ao chefe de Estado da ditadura. Em resposta, Las Chinas Morenas foram executadas e banidas dos centros urbanos. Muitas fugiram para áreas rurais, onde continuaram a dançar. A mudança para as áreas rurais enfatizou a natureza sincrética contida na personagem, unindo religião, cultura popular e sabedoria indígena.
Juana Carrasco no Festival del Señor Jesús del Gran Poder, La Paz, Bolivia, c. 1973. Cortesia David Aruquipa.
As fotografias expostas abrangem duas décadas de transformação radical de La China Morena, dando ênfase às mudanças mais amplas para as pessoas de gênero diverso da região. Nesta personagem reinventada, a comunidade dos Dois Espíritos encontrou abrigo, ao mesmo tempo que a retirada para áreas rurais trouxe também a reconexão com as cosmologias indígenas locais, onde as pessoas Q’iwa são bem-vindas e reverenciadas como símbolos de boa sorte.
As 41 fotografias originais apresentadas em Barbarella’s Kiss refletem a passagem do tempo, mostrando sinais de envelhecimento e deterioração. Com imagens coloridas e em preto e branco, as recordações estão organizadas em ordem cronológica solta e arranjadas cuidadosamente na horizontal em quatro vitrines dispostas pelo espaço da galeria. Elas documentam as dançarinas Ofelia, Liz, Danny, Barbarella, Veronica, Juan Carrasco, Candy Vizcarra, Lucha, Rommy Astro, e Juana Carrasco durante o trabalho ou acompanhadas por representantes do governo local. Elas têm um visual glamouroso em suas botas de couro de cano longo e salto alto, e mini-polleras, saias tradicionais, coloridas, em uma época que coincide com a revolução da minissaia e dos movimentos feministas de liberação dos anos 1960. As dançarinas usam maquiagem pesada e perucas volumosas, por vezes coroadas com um chapéu borsalino, o tradicional chapéu-coco usado pelas Cholas.
Ofelia (Carlos Espinoza) na central Morenada, Carnaval de Oruro, Bolivia, c. 1973. Cortesia David Aruquipa.
Nesta personagem reinventada, a comunidade dos Dois Espíritos encontrou abrigo, ao mesmo tempo que a retirada para áreas rurais trouxe também a reconexão com as cosmologias indígenas locais.
A travesti Aruquipa Pérez ficou sabendo sobre La China Morena quando, em busca de sua própria identidade, se juntou à La Familia Galán, um movimento de homens homossexuais, cross-dressers, drag queens e pessoas andróginas da Bolívia, estabelecido no ano 2000. Membros de La Familia contaram a Aruquipa Pérez sobre as pessoas Q’iwa, que vieram de uma época anterior, e Aruquipa Pérez embarcou em uma jornada para descobrir, agrupar, sistematizar e disseminar a história LGBTQ+ na Bolívia.
Barbarella’s Kiss conta a história da diversidade de gênero na região andina. Após o advento dos movimentos de liberação LGBTQ+ nos anos 1960, a exposição demonstra como artistas de gênero diverso incorporaram La China Morena como uma forma de participar deste movimento em nível local com uma forma de protesto comemorativa e não-violenta. As fotografias oferecem uma visão única da expressão de identidades de gênero diversas na região e são um exemplo da memória política queer na América Latina.
Barbarella’s Kiss no Auto Italia, Londres, Reino Unido, de 14 de abril de 2023 a 11 de junho de 2023
Raquel Villar-Pérez é pesquisadora acadêmica, curadora de arte e escritora, interessada em discursos pós-coloniais e decoloniais na arte contemporânea e na literatura do Sul Global sociopolítico. Sua pesquisa concentra-se no trabalho de mulheres artistas que abordam noções de feminismo transnacional, justiça social e ambiental, e em fórmulas experimentais de apresentar essas noções na arte contemporânea.
Tradução: Renata Ribeiro da Silva