Um ensaio escrito com base em uma conversa com a artista sobre sua jornada de autodescoberta como mulher negra e o papel que o autodesenvolvimento ocupa em sua obra, onde nos aprofundamos no que faz com que Marlou Fernanda represente visualmente seus diálogos internos com uma força criativa que desafia o mundo artístico branco e dominado por pessoas cis dos Países Baixos.
À direita: Marlou Fernanda, “Como eu, conhecimento, ego, morte”. (2022). Cortesía de la artista. À esquerda: Marlou Fernanda, "Velhas respostas, novas perguntas". (2022). Cortesia da artista.
Quando criança, Marlou viveu em Curaçau com seu pai brasileiro e sua mãe curaçauense até que se mudou para os Países Baixos com sua família, aos quatro anos de idade. Nascida em uma família artística, seu interesse pela arte tomou bastante impulso quando frequentou o Grafisch Lyceum, em Roterdã, período a partir do qual ela vem criando várias formas de artes visuais, que incluem a pintura, a fotografia e a cenografia. Contudo, Marlou Fernanda usa sua criatividade como forma de lidar, expressar e se conectar com o que ela vê como sua diretriz: seu eu autêntico.
Em sua obra artística, Marlou Fernanda questiona constantemente as realidades que enfrenta e que refletem questões muitas vezes inerentes ao crescimento e ao autodesenvolvimento. Questões como o significado da felicidade ou o que significa amar alguém. Seu foco no eu cria uma estrutura interessante através da qual seu trabalho pode ser observado. A obra de Marlou possibilita que se veja de forma profunda o que acontece quando uma mulher negra se coloca em primeiro lugar. Marlou desafia a ideia de que o fato de ser uma mulher negra está inerentemente ligado a uma identidade de auto-sacrifício. Seu obra desconstrói as ideias dominantes de identidade e representação, e navega a difícil tarefa da autodescoberta. Em sua performance visual The World Can Wait (O mundo pode esperar, estreada em 2020), ela se debruça sobre os temas Deus, fé inabalável e família. A performance apresenta uma visão íntima de sua fé e do papel que ela exerce em sua vida. Em Generational Anger (Raiva geracional, 2022), ela apresenta visualmente sua perspectiva sobre o racismo, a brutalidade policial e as desigualdades, e seu papel como criadora de mudanças. Essas performances mostram claramente que o foco principal da arte de Marlou Fernanda é sua voz interior.
Marlou Fernanda, “sonho ruim". (2022). Cortesia da artista.
Essa performance artística de autodescoberta ocupa lugar de destaque em sua obra The Nu-Nu show (O show de Nu-Nu, 2018). Nu-Nu, personagem da obra de Marlou Fernanda que ela vê como seu alter ego, reflete um lado diferente de Marlou Fernanda. A personagem é representada em suas pinturas e performances por um rosto visualmente muito parecido com o da própria Marlou Fernanda. Nu-Nu é retratada como extravagante, ousada, colorida, rebelde. Apesar das telas onde Nu-Nu é representada serem repletas de cores e elementos, não há dúvida de que ela é o foco principal. Sua presença na tela captura a atenção e desafia as pessoas que a veem a desviar o olhar. Nu-Nu encarna o lado corajoso e ambicioso de Marlou Fernanda. Esta faceta ocupa uma posição de dualidade em relação a ela, que descreve a si mesma como uma jovem que só quer ter uma vida normal. Nu-nu recria a ideia de liberdade, uma existência sem limites nem dúvidas. Essa performance apresenta visualmente um imaginário onde Marlou Fernanda pode expressar sua existência de forma autêntica. É uma representação visual que mostra o processo interno de crescimento e o processo de conflito em um debate interno sobre como encontrar o caminho correto. Através de Nu-nu, Marlou Fernanda é capaz de capturar um diálogo sobre as realidades complexas e contraditórias da autoidentidade.
Como uma mulher negra que cresceu nos Países Baixos, a expressão determinada do eu de Marlou Fernanda é uma narrativa artística radical em um espaço onde as vozes das mulheres negras são praticamente ausentes. Seu mundo desorganiza o status quo dos espaços artísticos dos Países Baixos como lugares inerentemente brancos. Apesar de ter que lidar com sentimentos ligados à síndrome de impostora ou de sentir às vezes que sua perspectiva é considerada descartável no mundo artístico, Marlou Fernanda reconhece que sua voz desafia a estrutura normalizada do cenário artístico dos Países Baixos. Por isso, apesar da demanda crescente por sua obra em vários meios artísticos e de seu crescimento como artista, ela continua a respeitar sua necessidade de silêncio. Ela sabe que momentos solitários são essenciais para que consiga escutar sua voz interior. Ela acredita que, às vezes, é necessário desligar-se das vozes externas para redescobrir a si mesma e sua jornada.
Marlou Fernanda, “Marlou Fernanda lendo”. Cortesia da artista.
A representação do eu é uma narrativa que continua interessante para Marlou Fernanda e sua obra. Em sua primeira exposição individual, Old Answers New Questions (Questões antigas, respostas novas, 2022), na galeria Hama, em Amsterdã, Marlou Fernanda visa abordar o tema da transformação e do processo de encontrar seu próprio caminho de vida. Nessa exposição, ela apresenta suas pinturas em grandes e pequenas telas, nas quais utiliza tinta acrílica e a óleo, colagem e mídia mista. Suas pinturas são muitas vezes repletas de cor e elementos abstratos. Nelas, Marlou Fernanda usa frequentemente o retrato literal de um rosto, elemento essencial, familiar aos seres humanos, em combinação com figurinos e formas deformadas e pouco familiares. As pinturas refletem uma imagem caótica, porém familiar, exibindo objetos e emoções em uma realidade desconstruída, enquanto partes do corpo e formas tradicionais são desenhadas de uma maneira que parece desafiar as premissas do que é natural e inerente. A exposição apresenta um desafio à ideia de que a realidade é indefinida, permitindo, portanto, que novas respostas sejam dadas a antigas questões.
Marlou Fernanda continua a utilizar seu desenvolvimento interno como motor para seu trabalho. Com a série de Nu-Nu, ela também ilustra a ideia da autodescoberta sem os limites da vergonha, do trauma ou do orgulho, representando a complexidade da autodescoberta autêntica. Em seu trabalho, ela é capaz de representar visualmente seu envolvimento com questões importantes para as quais às vezes ela não tem respostas, mas que, ainda assim, ousa apresentar em sua obra a fim de provocar o questionamento interno de seu público.
Marlou Fernanda é uma artista visual radicada em Roterdã. Ela cria obras visuais pautadas em seu imaginário, utilizando pinturas, filmes, performances e cenografias. Marlou Fernanda almeja encontrar a si mesma em tempo real, ao expressar uma visualização autêntica e transparente de seu processo. Ela utiliza constantemente seu trabalho para abordar questões da vida e transformar seu público, ao oferecer-lhe acesso a seu universo imaginário.
Lis Camelia nasceu em Curaçau e vive atualmente em Roterdã. Como produtora cultural, ela busca utilizar todas as formas de mídia que a ajudem a contar histórias que nos conectem à cultura e ao conhecimento. Ela espera contribuir para a difusão de ideias que tornem possível a construção de comunidades mais fortes na Diáspora Africana.
Tradução: Renata da Ribeira