Conhecimento como resistência

“O colonizador só enxerga um objeto exótico”

Artistas afrodiaspóricos e indígenas enfrentam condições totalmente diferentes daquelas encontradas pelos brancos. É preciso mudar esse contexto de representação no cenário das artes, rompendo com um campo simbólico permeado por hierarquias rígidas e cultos sólidos. Ocupar as curadorias é um passo importante.

Na contramão acadêmica ocidental, a Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira começou a funcionar, em 2010. Sediada na cidade de Redenção, no Ceará, Nordeste brasileiro, a Unilab utiliza uma metodologia de ensino afrocentrada e multidisciplinar e recebe alunos de todos os países de língua portuguesa. Curadoria de arte é uma entre as disciplinas oferecidas nas Humanidades. Joana D’Arc de Sousa, curadora de artes visuais e docente no campus de Redenção, explica que uma instituição nos moldes da Unilab só foi possível ser criada dentro de uma política pública decolonial na educação, na cultura e nas relações internacionais dos governos brasileiros de 2003 a 2016.

Disputas enormes

Na avaliação de Sousa, os resultados dessas ações são hoje evidentes em uma maior inserção de artistas racializados no circuito das artes. Na direção artística das instituições e curadorias, no entanto, ainda há espaços a serem ocupados, aponta. “Estamos lidando com um campo simbólico que possui hierarquias rígidas, rituais e cultos sólidos, as disputas são enormes. Daí a necessidade de construirmos espaços de formação que possibilitem a entrada no mercado não só de artistas, mas de curadoras e curadores negros e indígenas”, completa.

A recente contratação de curadores nativos representou um avanço na perspectiva decolonial dos museus. Em Londres, o Tate Modern conta com o guatemalteco Pablo José Ramirez, um teórico cultural no campo das práticas da arte contemporânea indígena. No Brasil, Sandra Benites ocupa o cargo de curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo, a primeira curadora indígena a ocupar um posto tão importante nas instituições museológicas do país. Em Nova York, o Metropolitan Museum of Art tem em sua equipe Patrícia Morroquin Norby, mexicana do povo Purépecha. Em novembro de 2020, a Pinacoteca do Estado de São Paulo inaugurou a exposição “Véxoa: nós sabemos”, com curadoria de Naine Terena.

Mapeamento e cartografia

Dados do Mapeamento das Mulheres nas Artes na Bolivia (1919-2019), elaborado pelas pesquisadoras Mary Carmen Molina Ergueta e FernandaVerdosoto Ardaya para o projeto O século das mulheres, do Goethe-Institut, identificou 500 profissionais das artes plásticas nos últimos 100 anos. Um número baixo em se tratando de expressões artísticas clássicas, como a pintura e a escultura. As autoras do mapeamento advertem que “é necessário levar em consideração que as artes plásticas têm sido consideradas um ofício de homens”. Além disso, em muitos trabalhos sobre a história das artes publicados na Bolívia, especialmente até a década de 1990, pouca ou nenhuma menção sequer era feita a artistas plásticos bolivianos.

No Brasil, um mapeamento também está em curso com objetivo de cartografar os profissionais brasileiros dedicados à prática curatorial. O estudo é vinculado ao Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, e operado pela Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição, coordenada pela Professora Carolina Ruoso, da UFMG, em colaboração com pesquisadores de arte de outras regiões do país. Nessa primeira fase de levantamento de dados, a Rede identificou 300 curadores atuando no país.

Conectar artistas africanos e afro-descendentes

Entre os exemplos de reexistência artística está a plataforma 01.01, definida pelos fundadores como dispositivo de educação decolonial: residência artística, escola curatorial e espaço de trocas sustentáveis entre artistas africanos e afrodiaspóricos (o artista fica com 70% a 80% do valor da obra). A primeira residência aconteceu em 2020, no Recôncavo Baiano, conectando artistas africanos e afro-descendentes.

A artista visual Ana Beatriz Almeida, cocuradora da plataforma, reforça que é preciso entender a escravidão e o racismo como um crime contra a humanidade de dimensões globais. Como resultado, “artistas afro-brasileiros, africanos e afrodiaspóricos estão presentes no mercado de arte em condições totalmente diferentes das encontradas por artistas brancos. Nosso papel principal é mudar o contexto de representação e comercialização destes artistas, conectando-os uns com os outros e com as comunidades que resistiram a escravidão e ao racismo”.

Fim do processo de ocidentalização

Passo a passo, a arte vem traçando suas estratégias decoloniais – conceito que se distingue de “descolonial”, termo associado à descolonização, ou seja, à desocupação das nações invadidas em um processo, portanto, já findo. Nesse novo cenário, o verbo-chave é reexistir, aponta o semiólogo argentino Walter Mignolo. “O projeto global ocidentalizador entrou em colapso no início do século 21. Isso não significou o fim do Ocidente, mas apenas o fim da ocidentalização em seu último intento: a globalização neoliberal. A ocidentalização do mundo não é mais possível, porque um número cada vez maior de pessoas está resistindo a ser integrado nela. Ao contrário, as pessoas começam a reexistir”, resume Mignolo no ensaio A colonialidade está longe de ter sido superada, logo a decolonialidade deve prosseguir, produzido para o evento online Arte e Descolonização com organização do Museu de Arte de São Paulo.

 

Anna Azevedo é jornalista, cineasta e artista interessada na interseção entre cinema e artes visuais.

Tópicos