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O que significa o ataque a obras de arte em Brasília?

Durante a invasão da Praça dos Três Poderes em Brasília por apoiadores de Bolsonaro, várias obras de arte foram atacadas. Neste ensaio, Luciara Ribeiro reflete sobre como objetos de arte são utilizados como elementos de combate ideológico em relação aos regimes coloniais europeus no mundo.

O livro Guerras culturais em verde e amarelo, organizado pelo Professor Doutor Pedro Arantes, docente do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo, em parceria com discentes e pesquisadores da mesma universidade, analisa a situação atual através de seus usos ideológicos, passando por produções que ocupam espaços na publicidade, no cinema e nas redes sociais, como memes, correntes de WhatsApp e vídeos do TikTok. Para o professor, vivemos uma guerra cultural onde as imagens e os objetos de arte são utilizados como elementos de combate ideológico, econômico e político. Ao que diz respeito ao regime extremista de direita, segundo o professor e o doutorando André Okuma, “esta nova direita tem organizado uma reação, estudado e atuado de forma incisiva na guerra cultural, como parte de uma estratégia mais ampla de reconquista de uma hegemonia global conservadora (para alguns denominada de neofascista e para outros teocracia cristã), não apenas no campo cultural, mas também econômico e político”.

O embate simbólico com as imagens está na pauta da extrema direita, e não por acaso teve como foco em seu ataque. O que pode nos assustar num primeiro momento, logo se encaixa no grande quebra-cabeça ideológico que tais terroristas defendem. Defensores de princípios nazi-fascistas, tanto o grupo quanto o seu líder político, o ex-presidente Jair Bolsonaro, repetem métodos de controle presentes em sistemas extremistas, totalitários, ditatoriais e coloniais, como a destruição ou controle de objetos culturais. Podemos recuperar alguns exemplos históricos onde o domínio do conhecimento crítico e o sensível se deu pelo saque, agressão e posse dos bens culturais e artísticos, como os regimes coloniais europeus nas Américas, Ásia e África; os governos nazi-fascistas na Europa; e as ditaduras na América Latina. Uma das bibliografias que contam relatos terríveis desta prática é África Fantasma, livro elaborado a partir do diário de viagem de Michel Leiris, secretário-arquivista da missão-expedição lingüística e etnográfica francesa Dakar-Djibuti, que descreve cenas de extremo terror contra as comunidades africanas dos territórios por onde passaram. As formas violentas de ataque aos bens visuais-culturais envolviam avariar, quebrar, roubar e até incendiar.

Vale lembrar que o ataque às imagens e a cultura, principalmente as de matrizes africanas e indígenas, foi frequente no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que já nos primeiros meses de mandato, fechou o Ministério da Cultura e ignorou as manifestações da classe artística. Nesse mesmo período, sem muitas justificativas, o ex-presidente retirou de exibição da pintura Órixás, da artista paulista Djanira da Motta e Silva, que representa divindades cultuadas em religiosidades afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda. Assumidamente religioso de vertente cristã conservadora protestante, a remoção da peça evidenciou a não aceitação da convivência cultural harmoniosa entre religiões e seus símbolos, além de reforçar perseguições às crenças de matrizes africanas.

Outro episódio emblemático de embate de Bolsonaro com as imagens foi a perseguição e retaliações do chargista Renato Aroeira. Após fazer uma charge crítica relacionando a declaração pronunciada pelo então presidente – que convocou seus apoiadores a invadirem hospitais nos primeiros meses de pandemia da COVID 19 – com o símbolo da suástica nazista, o artista recebeu convocações da polícia federal que buscava enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional.

O uso arbitrário da autoridade e do poder é um padrão em Bolsonaro e seus seguidores, que colecionam ações como as mencionadas. Entretanto, se de um lado há o constante ataque, do outro se mantém firme o contra-ataque. A classe artística aliada às lutas democráticas pela liberdade não esmoreceram, mantiveram a luta por políticas públicas e projeções de futuro. O livro O fim do Ministério da Cultura – Reflexões sobre as políticas culturais na era pós-MinC, organizado, em meados de 2021, pelo cientista político Rafael Moreira, apresenta os impactos da perseguição de Bolsonaro à cultura e as ações de diversos agentes em seu enfrentamento. A obra demonstra que, historicamente, a política cultural brasileira tem sido pouco valorizada, mas que o governo Bolsonaro a levou a níveis de extrema precariedade, o que só não foi pior devido à luta e reivindicações constantes da classe artística.

A sonhada retomada do Ministério da Cultura foi concretizada pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que além de retomar o órgão, nomeou a cantora, ativista e gestora, Margareth Menezes, como ministra, produzindo uma das já memoráveis imagens deste ano que acaba de começar.

Menezes, ao se deparar com as imagens da destruição do dia 8, não temeu, e firmou o seu compromisso com a criação do futuro Memorial da Democracia, espaço que se dedicará a acolher narrativas e objetos relacionados às lutas democráticas, que nos servirá para lembrar tanto das manifestações que a favorecem quando as que a atacam. Apesar da importância da futura instituição, a mesma não garantirá que novos episódios extremistas, como o do dia 8, não se repitam. Se faz necessário mudanças radicais que alterem as lógicas sob as quais estamos vivendo, ainda à sombra dos poderes de uma elite mesquinha, brancocentrada e neoliberal, regida por jugos da colonialidade, que favorecem a desigualdade, o racismo estrutural, o etnocídio, e diversas outras mazelas que nos afligem há séculos. Se faz urgente a ampliação e inserção de novos protagonistas da história brasileira.

Em cena histórica, no domingo que antecedeu os ataques, o presidente subiu a rampa do Planalto juntamente com sete representantes da sociedade civil, promovendo um reconhecimento de parte da população brasileira que não se enxergava no governo anterior e que ainda se vê pouco nas páginas da política e da história do país. Ainda há muito o que se fazer para reconfigurar as imagens nacionais, as memórias públicas, as noções e políticas do patrimônio artístico-cultural, o bem-estar social, a dignidade e o direito de todos os brasileiros de se reconhecerem sujeitos críticos, sociais e políticos. No entanto, nada justifica a banalização e deslegitimação dos processos democráticos, que violam a memória e a história, promovendo o caos e a estupidez generalizada. Tanto no Brasil como no mundo, a diversidade artística não é somente um símbolo da democracia mas também um dos pré-requisitos para mantê-la.

 

Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019). É colaboradora de conteúdo da Diáspora Galeria e docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina.

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