A tradicional Bienal de Arte de Havana deste ano foi cancelada, causando fortes protestos e discussões na cena cultural cubana. Mas a história não termina aí. Um grupo de artistas decidiu organizar uma Bienal alternativa.
Miles MacGregor, Mural em Havan, 11ª Bienal de Havana, 2012. Cortesia do artista.
Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam, organizador e sede usual da Bienal de Havana. Cortesia do Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam, Havana, Cuba.
Arlés del Río, Resaca. 2015. Projeto Atrás do Muro, 12a Bienal de Havana. Cortesia do artista.
Anúncio da Bienal alternativa #00Bienal de Havana. Cortesia #00Bienal
Desde sua fundação, em 1984, a Bienal de Havana estabeleceu-se como um modelo alternativo ao sistema de bienais e exposições do assim chamado “Primeiro Mundo”. Organizada pelo Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam, a Bienal surgiu da necessidade de criar uma plataforma de reconhecimento local e internacional para os artistas caribenhos e latino-americanos. Em seu começo, o evento organizou-se como uma espécie de concurso, no qual vários artistas competiam por um prêmio. No entanto, a partir de sua terceira edição, em 1989, a Bienal se redesenhou como um espaço orientado para o diálogo e para a pesquisa das práticas artísticas da região.
Apesar de ter entre seus antecedentes a Bienal de São Paulo (1951), a Bienal de San Juan del Grabado Latinoamericano em Porto Rico (1970), a Bienal de Artes Gráficas de Cali (1971) ou a Bienal de Pintura Centroamericana (1971), a importância particular da Bienal de Havana está em sua declaração abertamente política, intelectual, histórica e cultural a favor dos povos subdesenvolvidos.
Dannys Montes de Oca, diretora do Centro Wifredo Lam, declarou a implementação cultural das realidades políticas e econômicas do “Terceiro Mundo” como uma das principais contribuições da Bienal de Havana. Esse Terceiro Mundo engloba os países da Ásia, África, América Latina, do Caribe e Oriente Médio, mas também as práticas culturais das minorias marginalizadas nos Estados capitalistas desenvolvidos. Dessa forma, a Bienal de Havana fazia parte do programa político latino-americanista proclamado pela Revolução Cubana – através de outras instituições como Casa das Américas –, e a partir dessa perspectiva contribuía para gerar uma consciência continental, política e econômica terceiro-mundista em contraposição aos esquemas do capitalismo internacional.
A Bienal – que desde 1994 se converteu em um evento trienal – constitui-se no evento mais significativo das artes visuais cubanas. Seu programa de exposições e encontros de curadores e artistas convidados gera uma atmosfera de intercâmbio e enriquecimento que contribui para a atualização dos discursos teóricos e para a cena criativa de Cuba. Durante a celebração da Bienal, os artistas selecionados atuam nas praças, ruas e edifícios destruídos para gerar projetos de interação com os habitantes e visitantes de Havana. Nas edições mais recentes da Bienal destacaram-se as exposições colaterais Detrás del Muro (Atrás do Muro) e Zona Franca (Zona Franca), que convertem tanto o calçadão de Havana como o Complexo Morro-Cabana em incríveis cenários artísticos de participação coletiva. Nesse sentido, a 13a Bienal de Havana de 2018, que agora foi adiada para abril-maio de 2019, continua interessada em examinar a criação como acontecimento vivo ou experiência em curso, a partir do título sugestivo “A construção do possível”.
O cancelamento da Bienal de 2018 devido aos efeitos do furacão Irma (setembro de 2017) sobre as instituições e infraestrutura culturais cubanas parece colocar em evidência o agravamento das tensões políticas e o cansaço da estrutura organizadora cultural da ilha. Sabemos que Cuba não se acostuma com a simultaneidade de grandes eventos: do Festival do Livro ao Festival de Teatro, Festival de Balé ou Festival de Cinema; os acontecimentos se estabelecem com uma sucessão temporal que impede sua coexistência. A centralização do sistema administrativo cubano favorece uma estrutura vertical de vigilância e controle que garante a ordem ideológica durante o único “megaevento” desenvolvido em um espaço e tempo específico.
Desse modo, não era conveniente que a 13a Bienal de Havana coincidisse com a transferência de mandatos estabelecida pela primeira vez em quase 60 anos fora da família oficial (os Castro). No marco da nomeação de um novo presidente, o governo não podia permitir-se um novo Susurro de Tatlin. Recordemos: em dezembro de 2014, a famosa artivista cubana Tania Bruguera foi presa em seu domicílio em Havana depois de reinterpretar, na Praça da Revolução, a performance Susurro de Tatlin, apresentada na Bienal de Havana de 2009. A ação consiste no estabelecimento de um pódio onde o público é convidado a expressar-se livremente durante um minuto. A prisão desencadeou um processo de prisões e repressão à sociedade civil cubana e uma onda de protestos da comunidade artística internacional. (A respeito, ver por exemplo: “La Bienal de La Habana: ¿participar o boicotear?”, debate publicado na página de internet da Colección Cisneros.
A decisão oficial de adiar a Bienal de 2018 produziu reações consideráveis no cenário artístico cubano. Nas palavras dos organizadores de um novo evento alternativo, a #00Bienal, o artista Luis Manuel Otero e a historiadora da arte Yanelys Núñez, a #00Bienal nasce “no momento em que as autoridades culturais cubanas tornam pública a suspensão da Bienal oficial, que já ocorre há 30 anos. A notícia circulou nas redes sociais, onde também se gerou um grande debate”. Várias perguntas vieram à tona, como por exemplo: por que não contaram com os artistas para tomar tal decisão? Até quando o Estado cubano continuará operando autoritariamente sobre o futuro imediato de seus cidadãos? “Das muitas propostas que apareceram”, explicam Otero e Núñez, “uma foi a de fazer a bienal de forma independente do Estado, e nós demos o passo à frente para comandá-la”.
Anúncio da Bienal alternativa #00Bienal de Havana. Cortesia #00Bienal.
Luis Manuel Otero e Yanelys Núñez também são autores de outros projetos artísticos notáveis por sua dimensão político-ativista: o Museo de la Disidencia en Cuba (Museu da Discidência em Cuba) e o Museo de Arte Políticamente Incómodo (Museu de Arte Politicamente Incômoda). Nessa ocasião, a #00Bienal, que ocorrerá entre 5 e 15 de maio de 2018, surge, de acordo com os organizadores, com a intenção de “apoiar o desenvolvimento da cultura cubana em momentos em que o país experimenta uma forte crise de fé, aumenta a banalidade e a desesperança”. A #00Bienal quer assumir como plataforma de organização diversos espaços independentes (estúdios e casas de artistas, organizações alternativas e iniciativas culturais) cuja prática possa estabelecer um diálogo com os conceitos do popular e seu imaginário. Assim, mais do que propiciar a inserção do artista nas instituições oficiais, a #00Bienal tem agora o desafio de legitimar as práticas criativas locais em um contexto de visibilidade internacional.
Aldeide Delgado é historiadora e curadora independente. Foi premiada com a Bolsa de Pesquisa e Produção de Texto Crítico 2017, expedida por Teor/ética. Seus interesses incluem gênero, identidade racial, fotografia e abstração nas artes visuais. Foi relatora no California Institute of Arts, Centro Cultural Espanhol Miami, Universidade de Havana, Casa das Américas, Biblioteca Nacional de Cuba e 12a Bienal de Havana. Estudou História da Arte na Universidade de Havana (2011-2016). Seus artigos foram publicados em Art OnCuba, Cuban Art News, Arte Al Límite e Artishock. É colaboradora de Artishock em Miami.
Traduzido do espanhol por Nathália Dothling Reis.