Convidado pelo curador Jacopo Crivelli Visconti, o artista alagoano Jonathas de Andrade faz a representação oficial do Brasil na 59a Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia. Sua obra Com o coração saindo pela boca aborda as manifestações populares como fontes absolutas da força da cultura e da reinvenção.
Vista da exposição Com o coração saindo pela boca, de Jonathas de Andrade, no Pavilhão do Brasil. Foto: Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo
Jonathas de Andrade, „Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste“. Vista dos cartazes na exposição do acervo da Pinacoteca de São Paulo, em 2021. Foto: Divulgação
C&AL: O Brasil passou por muitas transformações políticas e sociais nos últimos anos, incluindo a ascensão da extrema direita ao poder e a pandemia, pela qual o país foi significativamente afetado. Qual foi o teu ponto de partida para pensar uma forma de representar o Brasil na Bienal de Veneza?
Jonathas de Andrade: O título do projeto, Com o coração saindo pela boca, parte de uma coleção de expressões populares que são metáforas de corpo. Expressões como “nó na garganta”, “embaixo do nariz”, “revirar o estômago”, “língua afiada”, “carne de pescoço”, “sangue de barata”, “vergonha na cara”, “língua nos dentes”, “sangue no olho”, através de seus sentidos figurados, revelam, de algum jeito, a hipérbole do absurdo do presente. Se levarmos ao pé da letra, cada uma dessas expressões são exageros ou não têm sentido. Acho intrigante que a linguagem popular tenha o corpo tão presente, e em pedaços, e que, para minha surpresa, carregam relação intensa com a dimensão política do que vivemos no Brasil de hoje. Acho que partir dessa coleção de frases é enveredar pela tentativa de explicar o intraduzível sobre o presente do que se sente nesse corpo brasileiro.
C&AL: Na obra para a Bienal, Com o coração saindo pela boca, você opta por trazer à tona sensações, comportamentos e maneiras de se estar no mundo, para de uma certa maneira falar sobre o fracasso de utopias e ideais. Quais seriam essas utopias e ideais, e por que essa escolha?
JA: Não tenho tanta clareza sobre como o projeto poderá responder ao fracasso de utopias. Para mim, ele expressa algo sobre um certo estarrecimento diante do presente, e como este sentimento atua diretamente sobre o corpo numa tentativa de anestesiá-lo. Acredito que novas respostas e saídas vêm da força desse próprio corpo, no que é capaz de reinventar, recriar, e, assim, responder a uma dimensão diretamente política. Acredito que é bastante revelador perceber o quanto a linguagem recorre ao corpo para dar conta do sentimento e da subjetividade. Acredito que as obras chamam para um delírio poético que falam do absurdo mas do poder simbólico para pavimentar a reinvenção do presente num futuro com libido de criação. Diante de um presente tão carregado e sombrio, gosto de acreditar que é possível chamar para uma renovação dos votos por pavimentar novas utopias e inspirações.
C&AL: Em sua obra, você trabalha com expressões populares brasileiras. O popular e o erudito, fora algumas exceções, nunca dialogaram bem no Brasil. Como você quer articular essas duas pontas em Veneza?
JA: Acredito que existe uma erudição da tradição popular, como em manifestações do folclore, nas danças populares, na persistência das marchas de carnaval ou de ritmos como o frevo, na alegorias dos bonecos gigantes de Olinda ou dos desfiles do samba do Rio de Janeiro. Para mim, há algo de profundamente erudito em tudo aquilo que persiste, e extrapola temporalidades. Para mim, é muito natural pensar nesse trânsito entre erudito e popular na arte contemporânea e, na verdade, sempre me pareceu meio esquisito a distinção entre artista popular e artista contemporâneo, por exemplo, especialmente se a este último se atribui certa erudição a despeito do outro. Eu me sinto bebendo na fonte do popular e muito mais submetido à sua força cultural para comentar o que me interessa sobre o presente, o passado e o futuro, e acho que, no pavilhão, não será diferente.
Jonathas de Andrade. Processo de desenvolvimento de Com o coração saindo pela boca – o artista trabalhando com o escultor Silvio Botelho em Olinda, Pernambuco, Brasil.
C&AL: O popular também está presente em suas obras anteriores, como em Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste. Como o trabalho da Bienal dialoga com seus interesses e pesquisas anteriores?
JA: Acredito que reúno vários de meus interesses neste projeto. Vejo o fascínio pela linguagem e pela palavra, o olhar para manifestações populares como fontes absolutas da força da cultura e da reinvenção, a ideia de coleção e índice como espinha dorsal para uma sistema de imagens, a vontade de navegar com ambiguidade pelo que há de intenso na existência e metáforas visuais. Gosto de desenvolver um tema em conjuntos de imagens, e neste projeto sigo com instalação de fotografias e uma experiência em vídeo, mas também me aventuro dando uns passos adiante no caminho da escultura, que é um terreno que sempre me despertou curiosidade.
C&AL: O corpo, entre a força física do trabalho e o erótico, ou como marcador de identidade, também é um elemento presentes em outros trabalhos seus. Qual é o papel do corpo em Com o coração saindo pela boca?
JA: O corpo neste trabalho navega um pouco por todos esses terrenos, mas, desta vez, o corpo ganha uma dimensão alegórica do Brasil. Através da linguagem, podemos nos aproximar do desconcerto universal da existência em outras culturas, transitando pela força criadora e desconcertante do erótico, pelas contradições da natureza e da ecologia, pelos prismas das múltiplas identidades, e pela beleza aflitiva da existência.
C&AL: Para o trabalho, você criou fotografias, esculturas e um vídeo. Por que a escolha dessas mídias? JA: O coração que sai pela boca é como um sentimento de gravidade que é tanto de um pico de emoção como de uma quase vertigem. Sempre me pareceu instigante tentar dar conta desse pontapé conceitual de múltiplas formas. As esculturas tomam o espaço e se relacionam com o edifício modernista que é o pavilhão. A coleção de expressões ocupa uma constante durante a exposição, como acontece em projetos meus anteriores, como o Ressaca Tropical. Gosto de pensar fotografias como um conjunto de imagens que, como um todo, compõem uma certa complexidade sensorial. E o vídeo traz o som e a potência da narrativa, da imagem em movimento, e da beleza mítica, do realismo fantástico latino americano, e da capacidade de sonorizar todo o espaço. As esculturas podem ter uma dimensão cinética e sensorial, que convidam o público a se comportar fisicamente no espaço diante da presença delas. Gosto de pensar arte como um meio que me chama a provocar sensações e envolver o público em jogos de significados que falam sobre o presente e convocam o repertório de quem chega para completar o sentido do que tento trazer.
Jonathas de Andrade é um artista alagoano que trabalha com temas sociais através de instalações, vídeos e fotografias.
Camila Gonzatto é uma das editoras da revista C& América Latina.