Nessa entrevista, o artista mexicano Baltazar Castellano Melo fala sobre sua obra, mestiçagens afro e as comunidades negras em Guerrero, no México.
Série “MIGRAR - a saída dos ofícios”. Foto: Baltazar Castellano Melo.
A questão da miscigenação, que é parte integrante da construção hegemônica da mexicanidade e dos mitos coloniais, muitas vezes transmite a ideia romantizada de uma síntese de várias culturas. A miscigenação presume resolver a questão das desigualdades raciais herdadas de um sistema escravocrata e colorista, porém às custas da negritude. O trabalho do artista afro-mexicano e mixteco Baltazar Castellano Melo permite repensar a questão da miscigenação, em torno dos movimentos migratórios de ontem e de hoje, como hibridizações negras em movimento que possibilitam a criação de novos mundos.
C&AL: A série Migrar semeia a ideia de que as migrações, forçadas ou não, são, antes de tudo, processos de transmissão que carregam e reproduzem uma memória histórica. Você pode nos dizer mais sobre sua visão das identidades em movimento ligadas a essa série?
Baltazar Castellano Melo: Não tem nada a ver com a negritude nem com a escravidão, trata-se do problema da migração de povos indígenas, mestiços e afro-mexicanos, e de como os migrantes têm algo em comum: melhorar suas condições de vida, como é o caso de Guerrero por meio do narcotráfico; a pobreza e a fome continuam atuais. E também, como diz Néstor García Canclini em Culturas híbridas, todos nós viajamos e reproduzimos a cultura de onde viemos, de fora do território.
Série “MIGRAR - coleção mista de papel”. Foto: Baltazar Castellano Melo.
Como diz Néstor García Canclini em Culturas híbridas, todos nós viajamos e reproduzimos a cultura de onde viemos, de fora do território.
C&AL: Nesta obra, você fala de novas negritudes. Quais são elas, e quais são os novos mundos que estão sendo criados e se desdobram nelas?
BCM: Esta obra quer mostrar como se entrelaçam as origens africanas e seus compartilhamentos em todos os espaços e territórios onde chegou a Diáspora Negra na América Latina. Esses traços compartilhados estão nesses novos mundos e habitam cada pessoa em seu lugar, com suas representações culturais e patrimoniais. Essas novas negritudes devem-se às novas migrações forçadas pela violência, pela falta de oportunidades e também, muitas vezes, pelos desastres naturais que assolaram todos esses países, cujos habitantes ainda buscam o “sonho americano”, mas acabam ficando pelo caminho e compartilhando essas novas miscigenações.
C&AL: Por que são importantes esses mundos?
BCM: Eles são obviamente importantes, porque tiveram a memória arrancada, apagada e branqueada. Ou seja, a branquitude na arte é determinada como o belo, o humano e o moderno. Mas aquele que não se encaixa nessa branquitude normalmente é visto como alguém que não tem humanidade, que não é bonito e, obviamente, representa o atraso. Cada novo mundo rompe com esses estereótipos do belo. Portanto, essas novas negritudes advêm das migrações e do contato dos povos com as comunicações. Vemos a integração, na arte, de pessoas afro-mexicanas e suas representações nas mesmas peças.
Exvotos. Foto: Baltazar Castellano Melo.
C&AL: Você também trabalha muito com jovens de sua comunidade, em Guerrero, em projetos de memória histórica relacionados a identidades afrodescendentes e fundamento territorial. Você poderia descrever a vida desses jovens e o trabalho que realizam juntos?
BCM: Na realidade, quem coordena esse trabalho é a antropóloga Olga Manzano. Eu, por minha vez, me dedico mais à criação da arte, ao ensino de técnicas, e também à busca do sustento do projeto da identidade afrodescendente. É uma nova denominação que não chega a ter mais de 20 anos no território. Sou ex-membro do centro cultural quilombola, um grupo que o Padre Glyn formou nos anos 1990. O Padre Glyn era um afrodescendente de Trinidad e Tobago. Ele percebeu que, na costa, vivem pessoas de pele escura que se autodenominam negros e não afro-mexicanos. Então, depois de saber quem eu era, de conhecer minha história e minha memória, tratei de comunicar isso aos jovens. E Olga Manzano faz o trabalho de pesquisa, que faz com que os jovens se vejam e se reconheçam nos personagens que recriamos. O trabalho que fazemos na Comunidade de Guerrero tem mais a ver com o trabalho em equipe do que com um trabalho individual. No México, o conhecimento e o autorreconhecimento do povo afro ainda é pouco expressivo, somente os jovens entre 19 e 30 anos sabem o que significa ser afrodescendente.
Há muita marginalização, discriminação, aldeias abandonadas onde não há saúde, educação. O que fazemos através do Raíz de la Ceiba, nosso coletivo, é ir às comunidades para ministrar oficinas. Não vamos mudar o mundo, mas vamos mudar uma criança, uma pessoa jovem, para semear através delas, para reescrever sua própria identidade através das artes. Menos violência, menos migração, mais cultura.
Muraleando com Castellano. Foto: Baltazar Castellano Melo.
C&AL: Seu trabalho é como o desdobramento de uma longa história que você nos conta com minuciosos detalhes em suportes especiais – como os muros da cidade –, o que permite uma verdadeira imersão em fragmentos de memória, mas não apenas isso. Você pode nos falar sobre o papel dos murais em seu trabalho e sobre o que eles dizem?
BCM: Como comentei, os murais começam na comunidade com o Raíz de la Ceiba. O mural comunitário tem como essência conhecer e reproduzir a memória desse território, e faz isso junto com os jovens. Fiz murais no centro cultural quilombola por muito tempo; pouco depois, passei a me dedicar às artes gráficas. Em dado momento, percebemos que os murais eram uma parte importante para as pessoas se apropriarem novamente dos espaços e de sua memória, o que era muito importante. Depois fomos convidados para participar de um projeto afro-estadunidense, onde os primeiros murais nacionais e internacionais foram feitos em conjunto com vários artistas panamenhos. Olga Manzano e eu continuamos pintando até chegarmos ao último mural na Espanha, que representa a história da negritude, mas também a história da miscigenação e das mulheres indígenas, que também fizeram parte dessa importante história negra. Um destaque à parte é a importância do envolvimento da comunidade na elaboração dos murais, porque eles nos contam suas histórias, que foram apagadas da memória. Também trazemos novas histórias que eles não conhecem.
C&AL: Você pode explicar o que são esses ex-votos e que histórias eles contêm?
BCM: Essa foi uma ideia que trabalhei junto com Olga Manzano, tendo cabido a ela a pesquisa das histórias dos milagres. Os ex-votos registram milagres concedidos por santos como São Judas Tadeu, a Virgem de Guadalupe, Santo Isidoro Lavrador, a Virgem de Juquila, a Virgem da Estrela, A Criança Sagrada de Atocha e Santa Cecília – que são os santos mais populares no país. Todos esses dados foram compilados por Olga e trabalhados por mim. Em duas pastas, uma de metal e uma litografia, vimos o sete como número cabalístico, o que é uma espécie de ironia com as coisas católicas ou cristãs – como essa parte do sincretismo, onde o santo se esconde atrás da origem, ou seja, é como um sincretismo que envolve a minha raiz negra. Olga e eu fizemos, então, esse projeto das pastas. Ela projetou as pastas e eu comecei a pintar os ex-votos de frente. Gostei muito dessa pasta, porque ela reproduz a memória afro através do sincretismo católico. Deve-se notar que os ex-votos são uma tradição do México, onde os pintores têm um estilo inato. Sem escola, eles fazem os ex-votos para agradecer aos santos e depois os deixam nas capelas. Foi nisso que nos inspiramos. É arte folclórica mexicana.
Baltazar Melo é pintor, artesão, escultor, dançarino e músico, formado em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes de Oaxaca. É natural de Cuajinicuilapa, México, e sua obra é dedicada a mostrar a riqueza cultural das comunidades negras de sua cidade natal. Melo inspira-se nas histórias da memória oral de um navio, da Mãe África, do cotidiano de seu povo e da história dos outros quando é contada.
Serine Ahefa Mekoun é uma escritora e jornalista multimídia que trabalha entre Bruxelas e a África Ocidental. Ela escreve a respeito das comunidades de artistas e sobre como elas ativam a mudança social em contextos pós-coloniais.
Tradução: Soraia Vilela