Conversa com Lucia Nhamo

Histórias emaranhadas de lugares descontectados

Existem paralelos entre os contextos políticos do Brasil e do Zimbábue, diz a artista Lucia Nhamo, que passou por uma residência em Salvador.

C&: Seu vídeo Portrait of Decade: Zimbabwe 1999-2009 (Retrato da década: Zimbabwe 1999-2009) foi apresentado e ganhou a 11ª Edição da Bienal Africana de Fotografia, a Bamako Encounters, em 2015. Você poderia contar qual foi sua inspiração para aquele projeto e como ele nasceu?

LN: Eu fiz o “Portrait of a Decade” em 2011. Foi uma época na qual nós, zimbabuanos, pudemos respirar um pouco e refletir coletivamente sobre a última década de turbulências sócio-econômicas. Por meio das lembranças pessoais de minha mãe das experiências cotidianas durante essa época, o filme medita sobre o efeito da política nacional nas percepções pessoais da realidade. O espectador só pode ver os pés e as mãos das pessoas comuns enquanto realizam rituais diários, em contraste com gravações de arquivo de representantes do governo que mostram rostos e corpos inteiros. O ensaio de Donald Donham, “Staring at Suffering: Violence as a Subject” (Olhar o sofrimento: violência como sujeito), serviu como um esquema para mim, em termos de pensar sobre formas alternativas de representar o trauma. Ele realça a responsabilidade que temos de contextualizar as situações, enfatizando as complexidades em jogo e rejeitando a abordagem essencialista ao sujeito em questão. O desejo em contraposição ao sensacionalismo é o que me atrai ao trabalho de Doris Salcedo. Não existe melodrama na representação da memória e da perda num trabalho que trata da história e do trauma silencioso dos desaparecidos em Colômbia, sua terra natal.

C&: Os aspectos sócio-econômicos de Zimbábue ocupam um papel central no seu vídeo Free Fall: A Chronology of the Zimbabwe Dollar (Queda livre: uma cronologia do dólar zimbabuano). Por que você escolheu isso?

LN: Embora o dólar zimbabuano deixou de ser usado oficialmente em 2009, ele continua sendo um símbolo nefasto da desastrosa realidade econômica que culminou em 2008. A questão e a ameaça do “retorno do dólar zim” é um agouro constante que permeia a vida cotidiana enquanto andamos na corda-bamba da instabilidade econômica e precariedade política. “Não é política, é vida”, como escreve Ngugi.

C&: Conte-nos como você faz uma instalação multimídia como essa. Por exemplo, como você trabalha com o espaço?

LN: Eu começo com um elemento chave e, então, construo uma experiência em torno a ele. O espaço que você tem para trabalhar sempre vai marcar a forma e a experiência da peça. Com o Free Fall, esse elemento era a animação de vídeo de três canais, que era mediado através de uma companhia aérea fictícia. Todos os elementos que compunham a instalação foram empregados em função dessa ficção: eu atuava como aeromoça e servia amendoim para as pessoas, os amendoins vinham de uma embalagem personalizada, com guardanapos personalizados, servidos em um carrinho real de avião recondicionado. O loop do vídeo é pautado pelo script dos anúncios de embarque e segurança no voo. E tem uma área de “duty free” com caixas da finada moeda zimbabuana…

C&: Na exploração que você faz de contranarrativas, qual a importância que você dá à ideia da memória e arquivos, também em termos de imagens?

LN: A série antológica Whitechapel: Documents of Contemporary Art é produto de uma parceria entre a editora do MIT e a galeria Whitechapel, localizada em Londres. Na introdução que Charles Merewether escreveu para a edição sobre os arquivos (The Archive), ele diz que uma das principais características da sociedade de hoje é a “importância cada vez maior que se dá ao arquivo”. O conceito de “contra-arquivo” ou de “contramonumento” de Merewether, no qual os artistas trabalham em “uma forma de relembrança do que foi silenciado e enterrado”, nutre meu trabalho como artista. Minha necessidade de lembrar está ligada aos mesmos princípios que Avishai Margalit expõe em seu livro The Ethics of Memory (A ética da memória) e está bastante relacionada com a noção de febre de arquivo de Derrida enquanto uma “busca do arquivo bem no ponto em que ele se esvai”. Tanto os arquivos pessoais quanto os institucionais continuam a cumprir um papel enorme no trabalho de artistas que buscam problematizar o passado. Quando se trata do impulso de criar alternativas em resposta a uma ideologia dominante, o contramonumento em particular coloca a memória em movimento, contrastando a experiência humana enquanto ela irrompe nos absolutos unidirecionais da autoridade.

C&: Você acaba de terminar uma residência em Salvador, Bahia, na Vila Sul. Poderia falar um pouco sobre suas experiências lá e os encontros que você teve?

LN: Salvador foi uma experiência incrível. Pelo Instituto Goethe, tive a oportunidade de exibir meu trabalho e dar uma palestra durante a Mostra de Performance realizada pela Escola de Belas Artes. Dei uma palestra sobre meu trabalho na universidade e, para muitos, os paralelos entre os contextos políticos do Brasil e de Zimbábue tiveram especial ressonância. Também entrei em um projeto centrando no gesto de desembaraçar: me enrolei em 20 metros de tecido branco e desci diferentes ladeiras e lugares na cidade. A gravação do vídeo foi maravilhosamente estranha. Também deu pé a uma colaboração prazenteira com a performer Michelle Matiuzzi, que rolou para mim do lado de fora do edifício Coaty, de Lina Bo Bardi, no Pelourinho.

C&: Quanto ao seu interesse nas raízes escravas entre África e Brasil, de que forma você está abordando essa questão?

LN: Zimbábue não tem esse legado do tráfico transatlântico do jeito que Benim tem, por exemplo. Então, embora esse seja um aspecto importantíssimo da história global, não é um tema de ressonância pessoal para mim. Mesmo assim, eu encontro um valor enorme nos sentimentos e na pesquisa histórica de artistas que conheci aqui e que tratam desse assunto como parte de sua arte. Também não é possível lidar com questões contemporâneas gravíssimas sobre a raça no Brasil sem confrontar as repercussões desse legado histórico com uma carga tão profunda.

C&: Como você vê as relações e conexões entre os artistas lusófonos e os produtos culturais da África e América Latina?

LN: A língua foi um aspecto marcante e um mediador da minha experiência aqui no Brasil. Ela abriu uma consciência totalmente nova do mundo lusófono. Eu tenho pensado muito sobre os primórdios do comércio e da influência portuguesa no que hoje conhecemos como Zimbábue: a introdução do milho como nosso alimento básico, por exemplo, e a integração dos primeiros colonizadores portugueses. Também me comprometi a visitar Moçambique. É nosso país vizinho! Estou ansiosa por uma experiência profunda, cheia de arte, que vá além do passeio turístico superficial das praias e camarões.

 

Lucia Nhamo ganhou o prêmio de residência do Goethe/Lanchonete na Bamako Encounters de 2015. O Goethe-Institut e o Musagetes/ArtsEverywhere concedem o prêmio, por decisão do jurado, de uma residência de dois meses para uma artista da Bienal com a Lanchonete.org em São Paulo.O prêmio da residência é concedido a uma artista mulher cujo trabalho amplie e/ou desafie as perspectivas das migrações africanas contemporâneas.

Aïcha Diallo trabalhou como diretora-assistente do programa de educação artística KontextSchule, afiliado à UdK / Universidade das Artes, em Berlim, e como editora-adjunta da Revista Contemporary And (C&).

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