Apropriar, fragmentar e dar novos sentidos pode ser uma ferramenta para subverter o olhar eurocêntrico e hegemônico. Três artistas provenientes do Brasil – Domitila de Paulo, Alberto Pereira e Moara Tupinambá – contam por que a colagem é central em suas obras.
Yuíre. Moara Tupinambá. Foto: cortesia da Artista.
Domitila de Paulo. Colagem Série Deusas no Orun. Foto: cortesia da artista.
Kuêra. Moara Tupinambá. Foto: cortesia da artista.
Domitila de Paulo: colar e se reinventar
Foi compilando, fragmentando, acrescentando novo sentido a imagens consolidadas que a mineira Domitila de Paulo alinhavou seu retrato simbólico de artista visual e mulher negra após iniciar sua carreira como estilista e designer de moda. Pois, até que ponto a sua imagem estava representada nas peças que criava para marcas importantes? “Eu via poucas referências que me conduziam a entender a minha identidade e a identidade afro-brasileira”, relembra. O reencontro com a colagem – uma constante na época da faculdade de Moda – resultou na série Deusas no Orun (2015), criada sob inspiração da leitura da obra Igbadu, a cabeça da existência: mitos nagôs revelados, de Adilson de Oxalá, sobre os mitos da criação do universo religioso que deram origem ao culto dos orixás.
As telas conectando mulher, natureza e universo chamaram atenção e hoje suas colagens também ilustram capas de discos e de livros. A artista trabalha com colagem analógica, o que faz do garimpo por imagens em sebos um capítulo especial do processo criativo. “Sempre gostei de coletar publicações antigas, como curiosidade sobre como eram os materiais de outros tempos até chegar no tempo em que vivo. E de reconhecer, através do tato, a diferença de texturas de papéis e impressões, cores e abordagens”, comenta.
A imagem da mulher negra ocupa espaço privilegiado nas telas de Domitila de Paulo, para quem importa a ressignificação de imagens afro-brasileiras. “O branco sempre foi apresentado como universal, protagonista em situações positivas. Quem não se encaixa no ser branco, não se vê representado”, aponta a artista. “É preciso refletir sobre a diferença entre representação e representatividade. A atividade de modificar essa lógica é muito importante. Estar nos lugares de decisão e de reconstrução desses sistemas é imprescindível para que de fato haja mudanças”, conclui.
Alberto Pereira: questionando o imaginário eurocêntrico
Foi se apropriando de pinturas dos séculos 15 ao 18 que o carioca Alberto Pereira lançou, em 2014, a série Negro Nobre, na qual rostos de personalidades negras icônicas da cultura brasileira, como os músicos Jorge Ben Jor, Dona Ivone Lara e Seu Jorge, assumem o protagonismo de portraits que retratam a monarquia europeia. Com a série, Pereira propõe uma nova narrativa para imagens produzidas em um período, no qual o negro nunca era retratado. Além de ressaltar a fundamental participação de corpos pretos na construção da cultura popular brasileira. “Gosto de retorcer os signos, busco deslocar elementos que aparentemente não têm relação e dar novo significado ao juntá-los”, diz o artista. Negro Nobre ressignificou 40 portraits com auxílio de softwares de edição de imagem e rapidamente se espalhou pelas redes sociais, sendo repostado pelos artistas que se viram em inusitada representação. “Meu objetivo é que não pareça uma colagem e, para esse efeito, o processo analógico acaba sendo limitado”, revela o artista.
À direita: Alberto Pereira. Naná Vasconcelos. “The Bone Player”. William Sidney Mount (American, 1807–1868). À esquerda: Alberto Pereira. Dona Ivone Lara. “Portrait of Queen Maria Josepha (1699-1757), Wife of King Augustus III of Poland”, Pietro Antonio Rotari.
A produção das primeiras colagens coincidiu com o aquecimento das pautas raciais no Brasil – o estímulo que Pereira precisava para subverter discursos com tintas coloniais. Desse impulso, criou uma imagem que, hoje, é velha conhecida dos que caminham pelas ruas, não só do Brasil, como também do Líbano, dos Estados Unidos, da Argentina e da Suíça: a colagem Jesus Pretinho, impressa em cartaz lambe-lambe e que, desde 2016, colada pelos muros e tapumes, questiona o imaginário eurocêntrico de um Cristo de pele alva. “Com a colagem, entendi que poderia criar alternativas à ‘realidade’ imposta, oferecendo outras percepções, recontando histórias, invertendo lógicas e ressignificando alguns aspectos simbólicos impostos socialmente para a negritude”, diz Pereira.
Moara Tupinambá: colagem como reconexão
O trabalho da paraense Moara Tupinambá busca inspiração nos povos originários da América. Descendente dos Cucuranã e Tupinambá, suas colagens são também uma ferramenta de ativismo. Com o conjunto Mirasawá – povo, em língua Nheengatu – estreou na técnica de adição de imagens. Camadas de estrelas, planetas, luas, folhas, flores e pinturas colaboram para ressignificar mulheres indígenas, transformando-as em personagens com aura mítica. O destaque dado ao feminino surge do desejo de reconexão com a ancestralidade e do reconhecimento do papel das mulheres na luta pelos direitos das nações indígenas. “Uso a colagem para me conectar com essas parentas. Já que não tive um álbum de família da minha ancestralidade, a arte me ajuda a criar essa conexão”, diz a artista.
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A origem das apropriações marca as duas fases da série. Na primeira, Tupinambá utiliza fotografias registradas por um olhar eurocêntrico. A obra Kadiweu, por exemplo, propõe uma releitura para o conhecido retrato de uma jovem indígena feito em 1872 pelo italiano Guido Boggiani: um cânone dos estudos etnográficos sobre grafismos corporais da nação Kadiweu, no Centro-Oeste brasileiro. A artista argumenta que, graças ao dispositivo da colagem, foi possível devolver a identidade a um rosto que, hoje, é associado mais à antropologia que à cultura indígena.
Na segunda fase, temos fotografias contemporâneas de mulheres atuantes na sociedade indígena, registradas pelos próprios indígenas. A Presidente da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Sônia Guajajara, é imortalizada como estátua mítica sob uma chuva de estrelas. Com a pandemia e consequente restrição de acesso aos sebos, onde garimpa a matéria-prima para as colagens em revistas e enciclopédias, os trabalhos de Moara Tupinambá começaram a receber tratamento também digital e alguns ganharam versão em animação. O trabalho da artista está sendo exibido na exposição Resurgences of Amazonia!, ao lado de Uyra Sodoma, no Kunstraum de Innsbruck, na Áustria.
Anna Azevedo é jornalista, cineasta e pesquisadora de artes visuais com foco em processos de reemprego de imagem e na decolonização da arte contemporânea.