Nascida em Totonicapán, Guatemala, Lucía Ixchíu estudou Arquitetura na Universidade de San Carlos, na Guatemala. Sua prática é transversal e inclui música, dança, pintura e gestão cultural. Seu trabalho destaca-se pela criação de redes comunitárias e comunicativas, que tornam visíveis injustiças territoriais e continuidades coloniais.
Plantão feminista "O violador no teu caminho", perfomance de Las Tesis na Guatemala. Foto: Fernanda Alvarado
Festival Interseccional Mulher em Movimento 2020, Lucia cantando. Foto: Débora Chacón
Festival Atores de Mudança, 2018. Foto: Carlos Ernesto Cano
Lucía Ixchíu é cofundadora do coletivo Festivales Solidarios (2013), voltado para a disseminação de informações, pesquisa local, trabalho coletivo, acompanhamento de presos políticos e produção de eventos. Junto com o arquiteto Gabriel Rodriguez, fez a curadoria da exposição Muchas somos todxs no Centro Cultural da Espanha, na Guatemala (2022). A mostra é um exemplo de como é possível tornar visíveis outras realidades e histórias. Neste caso, não se trata do bicentenário da independência da Guatemala e da criação do Estado-nação, mas da celebração da revolta indígena que ocorreu dois anos antes e foi liderada por personalidades como Atanasio Tzul. No momento, Lucía Ixchiú vive exilada em Bilbao, Espanha, junto do fotojornalista Carlos Ernesto Cano, com quem fundou os Festivais Solidários. Nesta entrevista, falamos sobre coletividade nas artes, música e sobre a gestão cultural como forma de busca da liberdade, além da pintura como terapia.
C&AL: Em seu perfil no Instagram, você se autodenomina “K’iche, guardiã da floresta, feminista comunitária, gestora cultural, artista, arquiteta e jornalista comunitária”. Existe um elemento, uma tarefa ou uma característica que seja mais central para você? Qual é a conexão entre todos essas atividades?
Lucía Ixchíu: Acredito que as identidades que nós, seres humanos, temos, são diversas, pois uma identidade nunca é estática. Não é uma questão de dizer que nasci assim e vou morrer assim, mas que cada um desses caminhos tem sido parte da minha história e vem moldando quem sou agora.
É importante mencionar que meus primeiros exercícios de intervenção a partir da coletividade foram a arte e a gestão cultural. Quando falo do meu trabalho político e artístico, sempre digo que me tornei gestora cultural aos 11 anos, porque tinha uma banda de rock. Junto com minha irmã, organizávamos nossos próprios eventos. A gestão musical e cultural serviu como forma de buscar minha própria liberdade. Para nós, que viemos de uma população indígena, conservadora e machista, isso era algo muito importante. Então foi a partir daí que comecei com meu trabalho político sem saber que já estava fazendo algo político.
C&AL: Como você chegou a realizar eventos de caráter mais evidentemente político?
LI: Isso começou em 2012, quando decidi migrar para a Cidade da Guatemala para estudar arquitetura. Naquele mesmo ano, uma organização comunitária foi às ruas protestar contra o aumento dos custos da energia elétrica. Durante essa manifestação, o Exército matou sete pessoas da minha aldeia de Totonicapán e feriu mais de 30. O massacre da Cúpula do Alasca foi o primeiro massacre que os militares da Guatemala cometeram em tempos de paz. Depois de 16 dias, no 20 de outubro, o grupo estudantil, no qual eu militava, foi às ruas com outras pessoas para expressar o repúdio contra o massacre e o Exército. O Estado criou um caso de criminalização contra esse grupo, além de ter imposto a ele uma multa por ter se manifestado. Foi aí que surgiram os Festivais Solidários. Juntamente com Carlos Cano e outro colega, Javier, nos perguntamos o que poderíamos fazer para dar nosso apoio. Assim organizamos uma primeira jornada, em maio de 2013. A arte política nasceu como uma forma de transformar, contar, denunciar. Ela é nossa ferramenta política. Por isso sempre me distanciei da arte simplesmente pela arte.
C&AL: Quais são as principais atividades dos festivais?
LI: Na Guatemala, há muita defesa do território, pessoas lutando pela mãe-terra, pela água, contra o extrativismo. Para nós, é importante vincular a arte ao jornalismo. O que fizemos foi ir ao território para documentar através das redes sociais. Isso começou a gerar comunicação com as pessoas dos territórios, que nos enviaram informações para que fossem publicadas. Aí começamos a incorporar também um componente muito forte do design gráfico. No entanto, agora duas das três pessoas que organizavam o festival estão fora do país, exiladas na Espanha.
C&AL: Qual o papel da arte para você? Qual é a importância da arte em sua vida pessoal e em sua luta política?
LI: Como mulher indígena, a arte salvou minha vida. Minha voz é parte fundamental, pois, sempre que posso, utilizo o canto como meio de expressão. A pintura, para mim, é uma questão mais íntima e introspectiva. Antes de sair da Guatemala, pintar era minha terapia. Isso me permitiu construir esses outros universos multicoloridos que estão dentro da pintura. Ali estão também as identidades diversas. Todos nós, artistas, precisamos ser gestores culturais, porque não temos outra escolha. Acredito que, em todo o mundo, o trabalho do artista e do gestor cultural é um trabalho precário, de baixa remuneração, não reconhecido e explorado. Porém, não me expresso sobre isso a partir de um ponto de vitimização, mas da liberdade e da possibilidade de construir outras narrativas. É daí que vem o exercício artístico.
C&AL: Dependendo do resultado das próximas eleições gerais de 2023, você voltaria à Guatemala?
LI: As eleições são transcendentais para o futuro do país. A Guatemala encontra-se agora em uma ditadura, ocupando o primeiro lugar nos quesitos pobreza e desnutrição na América Latina. Mas sim, se houver condições para a volta, retornaremos para poder continuar com nosso trabalho territorial.
Design de Lucia Ixchíu para a mostra Emancipadas, 2021, para o Centro Cultural de España.
Na Guatemala, há muita defesa do território, pessoas lutando pela mãe-terra, pela água, contra o extrativismo.
C&AL: Diante de tantos obstáculos, desigualdades e injustiças, como você encontra motivação para seguir lutando?
LI: Faço parte de um projeto coletivo, um projeto muito antigo, portanto, estou fazendo o que me cabe e o que muitos outros já fizeram antes. Admiro muito as avós de Sepur Zarco, as mulheres indígenas sobreviventes da violência sexual. Admiro muito as minhas avós e a minha mãe. São mulheres que abriram caminhos para nós. Estamos protegidas por esse saber – alguns de nós têm que viver a noite, para que outros possam viver o dia. Minhas avós tiveram que se calar, para que eu hoje possa gritar.
C&AL: Você poderia contar um pouco sobre a exposição El Pasado Adelante: Muchas somos todxs (O passado à frente: muitas somos todxs)?
LI: Fui convidada por Gabriel Rodríguez, um arquiteto, como eu, a fazer um exercício curatorial para o bicentenário da independência da Guatemala. Nossa intenção era fazer esse trabalho a partir de outro olhar, dando visibilidade a outras realidades. Para nós, era também importante sermos duas pessoas, a fim de romper com essa ideia de curador único. A partir daí, construímos um texto coletivo: o texto da exposição é uma entrevista que busca tornar essas coletividades visíveis. E juntos fizemos um mural de Atanasio Tzul.
C&AL: Quais são seus próximos projetos?
LI: Estou começando a reunir as ideias iniciais sobre o que será uma mostra sobre o exílio e o desenraizamento em que me encontro. Essa exposição fará parte de um exercício necessário para quebrar os silêncios existentes em relação a essa realidade que não termina quando as pessoas são forçadas a deixar seus territórios. É justamente aí que tudo começa a partir de um olhar individual e coletivo sobre o que isso representa. A partir dos Festivais Solidários também estamos começando a montar uma escola de arte, música e comunicação indígena chamada La Colmena (A Colmeia), onde queremos colocar em modo coletivo o conhecimento que adquirimos nos últimos anos em nosso trabalho, sempre a partir da gestão cultural comunitária. Temos planos de fazer uma turnê itinerante pela Europa em defesa do território e da mãe-terra e queremos montar uma exposição fotográfica dos processos que documentamos nos últimos dez anos. Temos muitos sonhos e estamos abertos àqueles que quiserem nos apoiar para torná-los realidade.
Lucía Ixchíu é uma artista da Guatemala, com uma prática transversal, que inclui música, dança, pintura e gestão cultural.
Hannah K. Grimmer é doutoranda em Estudos Culturais. Pesquisa a relação entre artes visuais, movimentos sociais e ativismos da memória.
Tradução: Soraia Vilela