Vozes afro-latino-americanas contemporâneas

Conflitos antigos, novas formas

Será que a questão da identidade deixou de ser um motor da criatividade artística na América Latina? Claro que não, diz nossa autora. Como mostram obras recentes de artistas afro-latino-americanos, a questão é essencial e assumiu formas muito originais.

Ao examinar a presença africana na arte latino-americana contemporânea, logo se é confrontado com a problemática migratória. O desligamento da terra mãe africana foi tratado na obra Dibujo Intercontinental (Desenho intercontinental, 2017), performance na qual Susana Pilar Delahante arrasta um bote amarrado à sua cintura, ou A dónde mis pies no lleguen (Onde meus pés não cheguem, 2011), ação de Carlos Martiel que consiste em anestesiar seu corpo e deslocar-se dentro de um bote à deriva em um rio. Ambas as performances recriam o trauma da separação da África, não partindo de um desejo de retorno, mas como parte de um processo de reconhecimento histórico, da noção de sentir-se entre dois continentes.

Esse tema é explorado pela artista María Magdalena Campos-Pons em De las dos aguas (Das duas águas, 2007). A obra é constituída de uma instalação fotográfica onde duas figuras – imagens da própria artista – aparecem em frente a um fundo azul, unidas pelos cabelos e segurando um barco talhado em madeira com quatro navegantes que representam divindades Iorubás. Os cabelos se transformam em ponte de ligação entre duas regiões, América e África, em caminho que pretende reconstruir a história, em elemento de conexão com seus antepassados.

Na série Sacudimentos (2015), Ayrson Heráclito visita os pontos de partida dos escravos na África (Maison des Esclaves, Goreia, Senegal) e de sua chegada no Brasil (Casa da Torre) para realizar, no espaço arquitetônico, um sacudimento, ou “despojo” religioso segundo o jargão popular cubano. Anos antes, em Transmutación de carne (Transmutação da carne, 2000), já havia abordado o drama escravo numa ação em que marcava com ferro quente diversos atores vestidos com charque (carne desidratada), em alusão aos atos cometidos contra os negros no Brasil.

Já a obra de Joscelyn Gardner ganha importância graças ao estudo dos conflitos sociais que a escravidão representou para as mulheres negras. Nas litografias da série Creole Portraits (Retratos criolos, 2002-2011), Gardner analisa diários de viagem, publicações e registros de lavouras com o objetivo de gerar imagens onde inusitados penteados africanos aparecem cingidos por instrumentos de tortura ou plantas tropicais usadas para provocar aborto após gravidezes resultantes de estupros.

Na obra dos artistas, a abordagem da África também é feita através do uso de uma simbologia ritual que remete aos sistemas cosmogônicos africanos, assim como da apresentação de práticas sincréticas e de resistência cultural na América. Destacam-se as fotografias de Ayrson Heráclito, em estreita relação com as de María Magdalena Campos, Marta María Pérez e René Peña.

O corpo humano aparece adornado com objetos, alimentos e expressões pertencentes aos iniciados em Candomblé ou em Santería. A série The Spirit Behind the Vejigante Mask (Ethnographic Abstractions – O espírito por trás das máscara Vejigante, Abstrações etnográficas), de José “Bubú” Negrón, nos remete à cultura popular e aos processos sincréticos em Porto Rico. A tradição das máscaras, trazida por escravos africanos, passou de geração em geração; hoje as máscaras são usadas na ilha durante o carnaval, a fim de invocar demônios e espíritos.

Outro exemplo importante foi a performance realizada pelo coletivo colombiano De Costa a Costa durante o 13º Salão Regional de Artistas da Região do Pacífico (2010). A performance foi apresentada como um projeto de curadoria Ruta de tropas (Rota de tropas) e se propunha a oferecer um espaço artístico para visibilizar e resgatar a arte do penteado. Conforme a declaração do grupo: “O conhecimento da técnica de trançar transita como uma parte importante do legado cultural da comunidade afro; tanto para quem trança quando para quem tem os cabelos trançados, ela inclui um traço de identidade”. Por sua vez, o trançado constitutiu umas das estratégias de resistência africana em sua luta pela liberdade no período da escravidão na América.

O critério para mencionar as obras anteriores foi, em primeiro lugar, estabelecer relações entre a arte e a assim chamada Afro-América (utilizando o prefixo “afro” em sua dimensão política). No entanto, esses artistas obviamente também examinam outros temas vinculados às situações sociais dos negros em seus contextos específicos. Assim, as fotografias da mexicana Mara Sánchez Renero, por exemplo, examinam de perto as condições de vida dos afro-mexicanos, o artista brasileiro Paulo Nazareth focaliza os estereótipos dos negros que continuam ancorados no imaginário social, e, em outras obras, como as de Carlos Martiel, o drama racial se estende para a discussão sobre outras formas de injustiça social que passam por fatores como classe e gênero.

O problema da identidade não deixou de constituir uma referência para os artistas latino-americanos. Só mudou o paradigma histórico a partir do qual a identidade é discutida. Se antes a África era uma das fontes que nutriam a arte no processo de formação da identidade cultural latino-americana, hoje o que acontece é uma reescritura, no sentido em que Jean-François Lyotard descrevia a intenção de se apoderar do passado para elaborar e superar o estado colonial. Reescrever o colonialismo significa tê-lo digerido de tal modo, que ele desaparece como categoria determinante e abre caminho ao questionamento do entorno social contemporâneo.

 

Aldeide Delgado é historiadora e curadora independente. Em 2017, ganhou a Bolsa de Pesquisa e Produção de Texto Crítico concedida pela Teor/ética. Seus interesses incluem gênero, identidade racial, fotografia e abstração nas artes visuais. Já deu palestras no Instituto de Artes da Califórnia, Centro Cultural Espanhol de Miami, Universidade de Havana, Casa das Américas, Biblioteca Nacional de Cuba e na 12ª Bienal de Havana. Estudou História da Arte na Universidade de Havana (2011-2016). Já publicou artigos na Art OnCuba, Cuban Art News, Arte Al Límite e Artishock. É colaboradora da revista Artishock, em Miami.

Traduzido do espanhol por Renata Ribeiro da Silva

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