República Dominicana

Tiempo de Zafra: materializando imaginários a partir das realidades contemporâneas

Tiempo de Zafra é um coletivo de artistas e um ateliê de design de moda criado em Santo Domingo, em 2017. Suas atividades refletem sobre a questão do excesso e dos resíduos têxteis, criando assim um coletivo que idealiza espaços de possibilidades e subverte dinâmicas capitalistas ao criar e difundir seus visuais.

A primeira música foi Veo, Veo, de Tego Calderón.

Nota 1: Há uma questão sobre a qual venho refletindo desde outubro do ano passado e que deu forma a nossa conversa: Como criar um pensamento estético que permita que os corpos da espécie humana estejam mais próximos de corpos de anfíbios, para que habitem, por exemplo, o imaginário ocidental e outros imaginários simultaneamente sem anular-se mutuamente?

Nota 2: Assim como as imagens são um resultado, também devemos pensá-las como um germe – capaz de voltar à vida, desenvolver-se e expandir-se uma vez que entra em relação. Criar imaginários não é apenas produzir objetos-imagens, mas também criar condições para que a recepção e a circulação destes objetos-imagens contribuam para que estes sejam com certeza uma fonte de percepções complexas capazes de despertar movimento e afetos. Na República Dominicana, a prática artística do coletivo Tiempo de Zafra está criando objetos-imagens intermediários entre o concreto e o abstrato. Ao mesmo tempo, condensa várias funções e adota soluções intrínsecas à rede das realidades contemporâneas e a seu desejo de materializar imaginários. Por exemplo: o corpo como uma entidade em relação, sem que isto anule sua autonomia; vestir-se como um ato de comunicação; o corpo como espaço político para a aliança e a resistência; a consciência de que os visuais contribuem para confrontar as ideias das pessoas que consideramos indiferentes ou repulsivas. E também a rua como espaço que sustenta as ações coletivas que constituem imaginários; subverter dinâmicas capitalistas e de consumo… Como se vestem os corpos que habitam mundos diferentes?

Nota 3: O termo Zafra vem da palavra árabe سفرة, que significa “viagem”; originalmente fazia referência à viagem realizada por centenas de pessoas para trabalhar na colheita das plantações de açúcar. Na atual República Dominicana, bem como em outros contextos do continente americano, zafra é uma unidade temporal que aparece em dois momentos do ano, quando se colhe e corta a cana de açúcar. Edgar Garrido e Stephanie Rodríguez, que fundaram o TDZ, interceptam esse ciclo com o objetivo de expandi-lo, e, em seu ateliê no centro histórico de Santo Domingo, a colheita é constante. Tiempo de Zafra é um coletivo de artistas e um ateliê de design de moda inaugurado no fim de 2017. Suas atividades refletem sobre a questão do excesso e dos resíduos têxteis. Edgar e Stephanie criaram um coletivo que idealiza espaços de possibilidades e subverte dinâmicas capitalistas, não apenas em relação ao consumo de objetos e materialidades, mas também criando e difundindo visuais. No ateliê, trabalham artistas, designers e praticantes do artesanato provenientes da República Dominicana e do Haiti, que constituem ao mesmo tempo um coletivo e uma estratégia que contribui para expandir as ideias do que é possível, ecoando a prática de artistas como Tony Capellán (1955-2017).

Nota 4: Os objetos-imagens do coletivo manifestam feitos sociais e econômicos não apenas da República Dominicana, mas de um continente onde as dinâmicas colonialistas, pós-coloniais e neocoloniais coexistem e onde são geradas imagens proféticas de imaginários distintos. Parece-me oportuno, portanto, lembrar que a política é criação – inventar relações e espaços para a ação. Nesse contexto, parafraseando o filósofo francês Gilbert Simondon em seu ensaio sobre imaginação e invenção, uma das coisas mais importantes da linguagem estética do Tiempo de Zafra é que, ao materializar e objetificar, ela se soma a outras manifestações estéticas. Juntas, exercem uma forte influência, que gera tensão na cultura visual e contribui parcialmente para a evolução social.

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O rádio toca La hora de volvé, de Rita Indiana & Los Misterios

Nota 5: Somos as relações que nos constituem, algo de nossa própria vida é cerceado quando outras vidas e ambientes são destruídos. Cultivar a consciência disso nas diferentes comunidades que constituem uma sociedade possibilita a construção de estruturas de gestão de poder coletivo em inter-relação. As condições para que o coletivo Tiempo de Zafra exista no ecossistema cultural dominicano não são um resultado pontual nem fortuito, mas antes a continuidade e a evolução de ideias ancoradas no final da década de 1990 e também com mais intensidade durante os primeiros anos da década de 2000, quando a prática da arte contemporânea na República Dominicana começou a redefinir os papéis e campos de ação do pensamento estético em contextos semelhantes, particularmente no caso dos projetos do Coletivo La Vaina e do Coletivo Shampoo.

Nota 6: Naquela época, o coletivo La Vaina era composto por estudantes da Universidade Autônoma de Santo Domingo, que hoje, em sua maioria, são artistas que exploram diversas áreas do pensamento estético: Eddy Núñez, Engel Leonardo, Farah Paredes, Fernando Soriano, Ivory Núñez, Karmadavis, Sayuri Guzmán, Virginia Perdomo e Willian Ramírez. La Vaina surgiu na cidade de Santo Domingo, no ano 2000, juntamente com a revista homônima. A publicação foi criada em resposta à falta de mídias culturais impressas independentes, críticas e experimentais. Ela funcionou como um espaço de exibição em formato editorial, com trabalhos de pessoas que produziam arte, escreviam e faziam música da comunidade cultural emergente da cidade na época. Cada edição – sete no total – era acompanhada por happenings, performances e instalações relacionadas a seu tema principal. Para a última edição da revista, publicada em 2005 no contexto da 8ª Feira Internacional do Livro de Santo Domingo, La Vaina produziu um best-seller: El Matatain (um mata-matatiempo). As revistas passatempo são o formato que bate os maiores recordes de venda durante a citada Feira. Com El Matatain, o coletivo trouxe ao espaço público as primeiras reflexões baseadas no pensamento estético contemporâneo a respeito das origens e ligações entre os processos ditatoriais dos antigos presidentes dominicanos Rafael Trujillo e Joaquín Balaguer e suas consequências diretas na situação atual da República Dominicana.

O rádio toca Una bomba, de Zacarías Ferreira.

Nota 7: Em 2004, o coletivo Shampoo, formado por Maurice Sánchez e Ángel Rosario, realizou a obra D’ La mona plaza, articulada em torno da publicação de um anúncio comercial em um dos principais jornais de circulação nacional, o Diario Libre. A notícia: um centro comercial seria construído no Canal de Mona, o canal marítimo que liga a República Dominicana a Porto Rico e também uma das vias que une o Mar do Caribe ao Oceano Atlântico. A Construtora Internáutica do Caribe projetaria o centro para as pessoas que circulassem pela zona, com todas as comodidades que o viajante merece. O curioso: o Canal da Mona é uma das fronteiras marítimas mais complexas do Caribe, é a rota através da qual pessoas da República Dominicana – e nos últimos anos também do Haiti – realizam viagens ilegais para tentar melhorar suas condições socioeconômicas ao fazer a vida em Porto Rico. A notícia monopolizou a atenção nacional durante dias. Como é possível que queiram construir um centro comercial para pessoas que estão viajando ilegalmente?… Talvez porque essa fronteira nunca deveria ter existido, da mesma forma que a fronteira territorial com o Haiti; talvez porque o Estado-nação dominicano tenha sustentado políticas públicas que tornaram a vida precária e inviável para a maioria das pessoas, talvez porque as estruturas de base do Estado-nação anulam a diversidade intrínseca das comunidades que administram… D’ La mona plaza participou da 4a Trienal Poli/Gráfica de San Juan, Porto Rico (2004) e da exposição The infinite island (A ilha infinita, 2007) no Museu do Brooklyn, em Nova York, Estados Unidos.

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O rádio toca Guateque campesino, de Ibrahim Ferrer.

Nota 8: Se a cidade é uma ferramenta e um formato que garante a reprodução do imaginário atual, como é possível interceptá-la? Responder a essa pergunta pode parecer difícil e certamente é. Mesmo assim, na conversa desta tarde, Stephanie, Edgar e eu concordamos que há uma ideia muito precisa – e ao mesmo tempo muito permeável – que podemos conceber como uma primeira resposta: podemos interceptá-la aparecendo no espaço público, aparecendo na esfera pública de uma determinada comunidade. Chegamos a essa conclusão após falarmos sobre a influência do gênero musical dembow dominicano e de sua estética sonora na aceleração dos processos de reivindicação da diversidade na sociedade dominicana.

Nota 9: Tiempo de Zafra tem uma relação muito estreita com o dembow e sua estética visual através da artista Tokisha e da produtora Paulus Music. O coletivo criou diversas peças para Tokisha; entre elas, as mais conhecidas talvez sejam as que a artista veste nos videoclips das músicas Tukuntazo, Linda e da mais recente Sistema de Patio.

Nota 2, repetida: Assim como as imagens são um resultado, também devemos pensá-las como um germe – capaz de voltar à vida, desenvolver-se e expandir-se uma vez que entra em relação. Criar imaginários não é apenas produzir objetos-imagens, mas também criar condições para que a recepção e a circulação destes objetos-imagens contribuam para que estes sejam com certeza uma fonte de percepções complexas capazes de despertar movimento e afetos. Na República Dominicana, a prática artística do coletivo Tiempo de Zafra está criando objetos-imagens intermediários entre o concreto e o abstrato, condensado várias funções e adotando soluções intrínsecas à rede das realidades contemporâneas e a seu desejo de materializar imaginários: o corpo como uma entidade em relação, sem que isso anule sua autonomia; vestir-se como um ato de comunicação; o corpo como espaço político para a aliança e a resistência; a consciência de que os visuais contribuem para confrontar as ideias das pessoas que consideramos indiferentes ou repulsivas. E também a rua como espaço que sustenta as ações coletivas que constituem imaginários; subverter dinâmicas capitalistas e de consumo… Como se vestem os corpos que habitam mundos diferentes?

Tiempo de Zafra é um coletivo de artistas que imagina espaços de possibilidades através do excesso e do desperdício têxtil na dinâmica capitalista.

Yina Jiménez Suriel é curadora, pesquisadora e mestra em Estudos Visuais. Ela trabalha como editora associada da Contemporary And América Latina e Caribe e como curadora associada da Caribbean Art Initiative. Yina vive em Santo Domingo, República Dominicana.

Tradução: Renata da Ribeira

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